Este posfácio nasce do silêncio.

Este posfácio nasce da mudez do espanto.

Nasce fadado à incompletude.

Nasce para deixar vazios.

Este posfácio é uma confissão de fraturas e falhas.

1. E fez-se o livro

Livros não apenas contam histórias. Livros são histórias. E este nasceu em uma visita, em tarde de chuva, ao ateliê de Carlos Dala Stella. Gestado inicialmente na cabeça do poeta e de sua editora, Cristiane Mateus, ganhou concretude quando matrizes encadernadas e soltas, guardadas em imensa série de pastas no ateliê foram sendo abertas e delas jorravam páginas e páginas e páginas de uma escrita abundante, de manuscritos ilustrados, de alta poesia liberta que tomou conta do ambiente, de meus olhos surpresos e encantados, criando uma atmosfera de respeito à arte e do desejo de aventura. Travessos estes olhos míopes sentiam o apelo daquelas páginas de onde saltavam imagens, desenhos, recortes, colagens. No mar em preto e branco, indistinguíveis as volutas de tinta preta criavam simbioses entre o que era forma plástica e forma poética. As linhas dos versos seguiam cursos fluviais caprichosos, misturando-se às imagens ora apresentadas em contornos fechados, ora abriam-se em cavernas vazadas a insinuar camadas de outras formas e sentidos. O turbilhão em preto e branco engolfava esta leitora de palavras e imagens. Tudo sonorizado pelas explicações do poeta a revelar o que as dezenas de pastas continham. Organizadas, etiquetadas, imóveis, as grandes pastas, tal uma ilha de tesouros, anunciavam muitos, infinitos poemas que a intenção de apenas um livro era incapaz de conter. Ficavam ali, descansando, à espera de pesquisa, de seleção, de volumes a serem editados.

Tal como Vergílio, Carlos Dala Stella guiava a mim e à Cristiane Mateus pelos labirintos de um paraíso de arte. De objeto em objeto, de opulentas e provocativas ilustrações, de poemas e mais poemas e mais poemas, Dala Stella falava de sua fecunda e notívaga e madrugadora produção poética. De incontáveis e incontáveis escritas que se armavam, se derramavam, se orquestravam naquelas páginas manuscritas. Talvez um livro novo em cada pasta.

A fecundidade da obra do poeta esbarrava no projeto contido de apenas um livro. Como selecionar entre a riqueza de obras artísticas do Louvre, apenas uma? Como selecionar entre as aves do Pantanal apenas uma? Como, diante do Universo, afirmar a existência de apenas um planeta habitado? A tarefa de fazer nascer “A arte muda da fuga” pertencia a difíceis – e impossíveis – seleções.

Uma possível saída – e que se revelou produtiva e acertada – foi solicitar ao poeta a escolha da produção recente que, segundo ele, representasse melhor sua poesia do presente. Como nauta experiente, ele saberia navegar melhor no oceano de sua produção.

Assim se fez: da internet começaram a jorrar em meu computador arquivos e mais arquivos de poemas selecionados por Carlos Dala Stella, de sua produção de apenas dois anos (2014-2015). Eram dezenas e dezenas de textos, com temas, motivos e extensão variados, a pedir tinta, impressão, luz do dia. Em sua autonomia e feliz liberdade, proclamavam, no entanto, elementos comuns, parentes, liames e conjuntos.

Em busca dos fios a se entrelaçar, a se combinar e enovelar, fui pouco a pouco descobrindo meadas comuns, matizes de cores predominantes, possíveis agrupamentos.

Nasceram, assim as categorias de amarração dos poemas pré-selecionados pelo autor e novamente selecionados por mim. Categorias clivadas pela editora e aprovadas pelo poeta. O volume ganhou sua primeira forma que Cristiane Mateus aperfeiçoou e enriqueceu, imprimindo-lhe ritmo e visualidade.

A tarefa se transformou em viagem lúdica e prazerosa. O que parecia aridez era antes avidez de leitura. Indagações já traziam implícitas as respostas. Estabelecidos os grupos, definidas suas características, os poemas facilmente deslizavam da tela fria dos arquivos enviados para os ninhos em que se agrupavam, solidários e irmanados. E este volume se fez.

2. Uma poética de vazios e silêncios

O artista plástico Carlos Dala Stella em sua obra plástica revela, nos vazados e nas aberturas, uma multiplicação de planos: camadas sucessivas em que continente e conteúdo se alternam e se contrapõem. Ao enveredar pela antologia “A arte muda da fuga”, o leitor irá confrontar variáveis dessa escolha estética da multiplicação de planos. A primeira constatação é de que Carlos Dala Stella é um poeta fingidor, integrante da constelação de Fernando Pessoa. Não é o único. Não será o último. Suas verdadeiras dores e saberes chegam à luz envoltos no manto diáfano de apurada técnica de escrita. É um poeta de miudezas, de sintaxe sem nós e de imagens de simplicidade e espartana concisão.

Ezra Pound gravou na mente de algumas gerações a qualificação do poeta como “antena da raça”. Vai por esta vereda a obra de Dala Stella. Antena captando silêncios, vazios, vazados. Em volutas poéticas que rocambolam de poema a poema, o poeta se desnuda e se autointitula. É uma poesia em que a imagem aparentemente plana aos poucos se abre em recortes e vazados por onde o leitor (também um espectador) é atraído para camadas profundas das palavras, dos ritmos e da poderosa visualidade que sedimenta sua obra.

As linhas mestras desta antologia e, muito especialmente, seu título explicitam-se nos versos de “A arte muda da fuga”:

“nunca o silêncio me foi

indiferente, cada vez mais

interfiro na trama

de seus fios transparentes

quem sabe dessa parceria

um dia não surja

a arte muda da fuga”

Surgiu. Materializou-se. Ganhou forma, corpo, estrutura, conexões, tinta e papel. O poeta, não mais sem voz, pode apresentar-se vestido de cenários, de cores, de rimas, e qualificar-se para antenar silêncios e mergulhar em vazios. Há uma espécie de metafísica construída pelo desejo de ter acesso aos enigmas do não-dito, até para opor-se à vida trepidante e quase sempre artificial deste século que nos engolfa. O poeta capacita-se a outro fazer e sentir, como toda a confraria de poetas: “Somos os que ouvem o silêncio universal”, proclama ele em “Casulos de sol”.

O silêncio universal poderia enganosamente provocar no leitor a compreensão de uma poesia sideral, astrofísica, cósmica. Algo como ouvir estrelas, captar mensagens de outros mundos, antenar-se nas galáxias. É verdade que, enquanto motivos poéticos, é possível descobrir na sequência de poemas desta antologia boa quantidade de referências verbais a este campo semântico. No entanto, qual Ulisses resistente ao cantar das sereias, Carlos Dala Stella percebe o espaço sideral, mas somente o aceita e dá sentido quando ele se espelha em partículas terrenas: “grão infinitamente estelar/em universos de areia”, versifica ele em “Finitude estelar”. O paralelo universo estelar=grão de areia não é apenas uma comparação, a prima pobre da metáfora. É antes a possibilidade, como afirmava Carl Sagan, de nossa medíocre finitude humana ser resultado da “poeira das estrelas”, ou como este cientista diria menos poeticamente: “A vida é apenas um vislumbre passageiro das maravilhas que existem no Universo.” Essa correspondência transparece em muitos poemas desta antologia.

Não é outra a percepção do leitor quando lê os versos do poema intitulado “Olho d’água”: “quem mergulha a mão num olho d’água/toca a túnica inconsútil das sutilezas” .

A correspondência entre sentidos corporais e a decifração da realidade, uma clara ressonância da obra de Rimbaud, coloca na berlinda um dos procedimentos-chave da obra de Dala Stella: a concretude do mundo que o assalta em todas as horas e em todos os espaços transfigura-se em imagens de neblinas, de sutilezas, de silêncios significativos, de vazios-vazados abertos a planos cada vez mais profundos que interrogam os sentidos da vida.

“meus olhos fazem a ponte

entre as levezas inúteis

do mundo de dentro

e a linha curva do horizonte” (Insignificâncias) p.94

Essas pontes, por vezes bastante sutis, leves e pênseis, povoam a poesia com correspondências inovadoras a juntar, por meio dos liames das palavras, os diferentes planos da vida visível.

“continuo grato por tanta generosidade

mas eu não desejei essas coisas

muito menos elas esperavam ser desejadas

apenas colei nelas o selo do meu espanto” (Admiração) p.54

A presença da natureza, representada por uma pluralidade de elementos simples – aves, árvores, chuva, sol, estrelas, grão de areia – beira o bucólico, caso não servisse para serem ampliados em dimensões cósmicas ou em estados de alma. Neste aspecto, a poesia de Dala Stella bordeja a obra de Eugênio Montale (1896-1981), poeta italiano considerado hermético em linguagem poética e nos sentidos dos poemas. A crítica vê em Montale uma escrita que, servindo-se de fragmentos de tempo aparentemente desimportantes, busca compreender a vida que neles brilha e ganha sentido.

Montale expressa esse estado poético, por exemplo, no poema “Os limões”:

Vê, neste silêncio no qual as coisas

se entregam e parecem prestes

a trair o seu último segredo,

às vezes esperamos

descobrir um defeito da Natureza,

o ponto morto do mundo, o elo que não prende,

o fio a desenredar que enfim nos leve

ao centro de uma verdade.

O olhar perscruta em volta,

a mente indaga concerta desune

em meio ao perfume que se espalha

enquanto o dia enlanguesce.

São os silêncios em que se vê

em cada sombra humana que se afasta

alguma Divindade surpreendida.

A poesia de Carlos Dala Stella tem, porém, uma propriedade particular e oposta à do poeta italiano: foge do pessimismo montaleano e prefere articular sua visão da natureza-vida com o espanto, o desconhecido, o “silêncio universal”, porque “há em cada um de nós/uma coroa de mistérios/que luz alguma alumia” (Plenitude vazia).

Esse interrogar constante, mesmo sem encontrar respostas definitivas, guarda a riqueza de constatar com espanto as manifestações da natureza. São animais, “bichos”, que, em variedade copiosa, impedem que o poeta se sinta só. E voejam pararus, urubus sabiás, pintassilgos. E se arrasta a lesma sobre o mármore, a libélula esplende em vitral e a aranha tece, como o tempo. São pequenos animais a significar enigmas da vida e da arte.

A poesia de Carlos Dala Stella produzida neste estágio de sua obra artística incorpora uma visão madura nos questionamentos sobre a subjetividade, uma das linhas mestras temáticas de sua escrita: ”seja quem eu for/sou irremediavelmente o que sou/e ninguém é comigo!” (em “Transmutação”). Há uma aceitação tranquila da singularidade entre os mortais e uma inquirição constante da individualidade em face do universo. Mesmo que, em momentos de desilusão e de uma perspectiva negativa, seus versos considerem os seres humanos tal qual “cometas kamikazes”, envoltos em “um miasma/de vaidades”, fazendo ecoar nestes versos a crueza de um Augusto dos Anjos.

Mas são raros estes lampejos de acerba crítica à conduta humana. De um modo geral, isolado em seu casulo de verdes e cantos, entregue à arte, ao espanto, à aproximação vital da natureza exuberante (“à indiferença majestática da natureza”), em meio a “telas, esculturas, recortes, esboços” e rimas, o poeta constrói seu ninho artístico e existencial, no meio do qual, feito “água viva” viaja.

A máscara da calma maturidade não evita, entretanto, a consciência do corpo frágil e do tempo poderoso que “me apaga com afagos” e, no mesmo influxo, o obriga à aflição da criação artística. Tempo que com “indiferença exuberante” age como “um deus que não existe/mas está em todo lugar” (em “O deus presente”).

Se escrevi “calma maturidade” não elimino de minha percepção – e seguindo os versos do poeta – toda uma angústia e perturbação interna, uma desacomodação que está na origem de toda arte. Integra intrinsecamente esta madureza “aquilo em cada um de nós/que nunca virá à luz do dia” (em “Aquilo”). Contradições que não impedem que, descobrindo as arestas de uma secreta e indefinível parte de si, faça o poeta supor que “se eu estivesse aqui/estaria chovendo passarinhos mortos/sobre minha alegria” (em “Passarinhos mortos”). Entre a sintonia com a natureza, a arte de interrogar silêncios e a descoberta de faces desassossegadas de sua interioridade, o poeta derrama versos em busca da arte e de si mesmo.

Para quem se alimenta da fome, os versos se derramam em rios, as ideias se expressam em camadas e em desvãos, a busca de respostas para “mundos de ignorância e ausência” produzem no leitor efeitos desafiadores da sensibilidade e da compreensão.

Esta busca dos sentidos do mundo e do tempo, este indagar os vazios e os silêncios como repositórios de respostas e de beleza, acabam por conferir à poesia de Carlos Dala Stella a marca indelével de uma poética de inquirição, de comunhão estelar, de denúncia dos desacertos do homem em sociedade, de incompletudes pessoais e sociais. Constrói à semelhança de Bach, uma arte como fuga, isto é, uma composição polifônica no contraponto de conjuntos temáticos.

E tal como em seu poema “Silêncio”, chego ao final deste prefácio replicando seus versos: “o bom de pensar/é que depois/vem o silêncio”.

 

*Texto de Marta Morais da Costa para o livro A Arte Muda da Fuga, de Carlos Dala Stella.

  • Autor: Acadêmica Marta Morais da Costa
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