Sigmund Freud, médico austríaco que viveu no século XIX e foi o criador da psicanálise, resolveu apelar para a mitologia grega para explicar o que ele chamou de pulsão para a morte, ou seja, um desejo mórbido  que o ser humano  possui diante do fenômeno, corporificado na oposição entre Eros x Thanatos, a contrapartida inconsciente do desejo de viver. Não obstante, se este desejo pode ser constatado facilmente nos gurus do Oriente, que vivem esperando apenas morrer, para nós no Ocidente ocorre o contrário, onde todos se apegam à vida de forma sistemática.

Constata-se então que a atitude diante da ocorrência da morte é apenas produto de uma forma subjetiva nossa de encarar as coisas, uma reação que pode ser assumida de forma positiva ou negativa, dependendo de posições culturais assumidas. Não obstante, se olharmos a insistência com que a Natureza demonstra em manter a vida, relegando a morte a um papel apenas  sistemático, somos levados a crer que ela é a contrapartida de sustentação da própria vida, o que deveria eliminar a forma maniqueísta de encará-la.

Importa, portanto, a necessidade premente de que façamos uma reflexão consciente sobre a realidade concreta do que é a morte e como sua essência é apenas o exagero de uma cultura materializada e circunscrita aos nossos sentidos externos, pois nossa espiritualidade abre para nós a exigência de considerá-la sob outras perspectivas. O apelo à religião é um recurso transcendente e acessível a nosso espírito, que nos revela que a morte não é uma realidade concreta, mas apenas um rito de passagem a outra dimensão, aquela virtual e transcendente.

O cristianismo é um repositório fértil de imprecações sobre a realidade da morte, no qual Cristo insiste que o Pai não é Deus de mortos, mas dos vivos, Abraão, Isac e Jacó. Seus milagres ressuscitando inúmeros mortos nos fornecem uma referência de Sua forma de considerar a morte e Sua própria ressurreição é  o testemunho mais eloquente de que a vida não se extingue, mas apenas se transforma em nova dimensão, espiritual e virtual. E de fato, todos os grandes santos consideram esta vida como apenas uma passagem transitória, com destino final em outra dimensão.

Assim sendo, o cristão só deve falar em morte para considerá-la apenas o resgate de nossas imperfeições (S. Paulo), o último bastião de um Universo limitado, cuja redenção foi patrocinada pela encarnação do Cristo, que ressuscitou. Por conseguinte, a ocorrência de tantas mortes na pandemia não deve nos assustar, pois ela é apenas consequência da abundância da vida, esta a manifestação especial de um milagre que a Natureza traz em si como um tesouro, reflexo de um Universo, que, desde seu início, traz em gérmen, de forma inconsciente, os primeiros sinais; então, “ó morte, onde está a tua vitória?” (1Cor:55-58).

Em conclusão, a morte só significa algo para nós, se for vista de uma perspectiva espiritual, que a coloca em forma de implicação, com a qual ela assume a banalidade natural de algo imprescindível à sustentação da vida, uma circunstância que a coloca intrínseca à dialética do criar, a antítese que se supera em sua própria transformação. Dessa forma, a manifestação da morte não é nosso ingresso no mundo do nada, pois este só tem lugar como invenção de nosso nihilismo, uma consistente falha de nossa imaginação, como tantas que nos afligem. Porque a verdade da morte reside apenas no desaparecimento do corpo físico, ela não pode matar a espiritualidade de que é possuída.

  • Autor: acadêmico Antonio Celso Mendes
  • Foto: arquivo APL
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