Algumas vezes servi como fiscal de provas nos concursos do MP. Nessas ocasiões passava horas seguidas circulando discretamente em salas amplas, geralmente lotadas de candidatos, que disputavam o ingresso na carreira. Nossa obrigação era zelar pela incomunicabilidade dos participantes e a correção das provas, além de atender uma ou outra das conveniências das salas de prova. Numa dessas ocasiões os candidatos chegaram cedo, – como era de praxe, e, enquanto se acomodavam, ajeitando os pertences, ficaram no aguardo do início dos trabalhos. Nesse entretempo, sempre surgia um cumprimento mais afetivo de algum conhecido, ou mesmo, um rápido diálogo com quem as circunstâncias e o interesse aproximavam. Daquela vez, porém, minha prosa se alongou. Era com um jovem de boa presença, bem vestido e loquaz. Falou-me do seu interesse pela carreira, pela qual se sentia realmente vocacionado. E me revelou sua sedução pela imagem do promotor, que idealizava sob certa aura romântica, como uma figura quase heróica, vibrando a intrépida espada da justiça. Indaguei-lhe então de sua força em Direito Penal; a disciplina mais exigida nas provas e no próprio dia a dia do promotor, por se tratar de uma das importantes funções institucionais. Ele então me confiou que no Direito Penal não era bastante forte, mas sua esperança eram os bons conhecimentos que trazia de Constitucional, Administrativo e das demais disciplinas do concurso, que certamente compensariam essa diferença.  Ora, a simpatia do rapaz me conquistou e fiz fé no seu sucesso. Quem sabe estava ali uma esperança bem talhada para a função? Sim, o Direito Penal é importante para o promotor, mas não requer especialização. A experiência é igualmente enriquecedora e se amplia a cada dia, imune, muitas vezes, aos riscos das limitações e dos reducionismos das monografias.  Enfim, o exercício geral da função é que é o grande professor. E, foi durante essas excogitações que a prova começou: justamente a de Direito Penal… A princípio, um longo silêncio, natural para quem procura primeiro se localizar e repassar as ideias. Vencida, porém, essa primeira fase, quase todos se puseram a trabalhar. Menos o meu candidato, que vi pensativo, distribuindo um olhar vago pela sala ou folheando à solta o Código Penal. Com o tempo, me aproximei, com discrição. Lá estava o rapaz aflito e inerme diante de uma das questões da prova. Uma simples indagação sobre prescrição retroativa, cuja solução o próprio Código oferecia. Fiquei surpreso. E mais uma vez excogitei da importância do Direito Penal; juízo contraditado, porém, pela idéia de que não devemos avaliar as pessoas pelo que eventualmente não souberem dar resposta. Valor maior é o seu potencial pessoal, sobretudo quando se é jovem. O mais importante é o grau de interesse geral e a capacidade de se engajar, de se envolver numa missão, de se ligar a um destino; coisa que os concursos não avaliam. E foi assim que sutilmente soprei a resposta, mas a sottovoce: 110… Era o número do artigo do Código, com sua redação anterior. Foi o que bastou; o moço foi à lei e vi que se pôs a escrever. Depois disso só o fitava de longe e me parecia ocupado. Noutra ocasião, ainda, li de soslaio uma de suas respostas em Direito Constitucional. Não me agradou e cheguei a perder a fé. Mas devo ter feito algum gesto ou expressão que ele entendeu de aprovação. Usara uma só palavra para definir princípio da Constituição!… Terminadas as provas, os candidatos se confraternizavam nos corredores do prédio e trocavam impressões em grupos, sobre seus desempenhos e expectativas. Ao vê-lo, fui cumprimentá-lo, como fiz com outros, e quis saber como se saíra e o que esperava:

– Doutor, fui muito bem e faço fé de passar, disse-me ele com um sorriso efusivo e um abraço confiante. E, olhando nos meus olhos acrescentou: doutor, essa prova não foi minha, foi sua. Foi sua… Foi o senhor que fez. Mas, muito obrigado… Se passar, como acredito, devo minha aprovação ao senhor. E, de agora em diante, em todas as minhas orações vou rezar pelo senhor, para que Deus o proteja e o conserve para sempre. Muito obrigado, doutor!…

Confesso que estupidifiquei. Devo ter assumido uma tonalidade vermelho-arroxeada. Pois sim: eu que fiz sua prova!!!… Era só o que me faltava…  Mas, disfarcei o embaraço e saí depressa, carregado de culpa. Ainda, depois disso o vi uma outra vez, irradiando a mesma  confiança à entrada da Procuradoria. Mas os resultados ainda não tinham sido divulgados. Depois, nunca mais o vi…

  • Autor: Acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: cedida pelo autor