Torna-se incrível como uma pandemia, tendo origem num micro-organismo inconsciente, pudesse causar tantas transformações em nosso modo comum de viver. É como se todos nós fôssemos abalados, de repente, por uma ameaça invisível, mas mortífera em seus efeitos. E, de súbito, pudéssemos perceber como é frágil nossa existência terrena, que mesmo em sua aparência estável, pudesse ser interrompida de forma tão despicienda.

Isolamento social, fuga das aglomerações, permanecer em casa, usar máscara de proteção, evitar saídas desnecessárias, distância das reuniões, lavar as mãos a cada hora, desinfetar tudo, este foi o quadro dramático de providências causado por este animalzinho infeliz, cujo tamanho é menor do que um átomo, mas cuja conformação genética afeta todo o nosso organismo.

Essa perda de confiança na consistência de nossa vida foi o que mais abalou nossa maneira normal de considerá-la, forçando-nos a uma abertura mais pensativa sobre nossas razões de viver, o que não deixa de significar uma oportunidade para considerações filosóficas mais profundas. E a reclusão da quarentena contribui para o fato de termos mais tempo para meditar sobre coisas que estavam esquecidas.

Neste momento, pela gratuidade da morte, há um vácuo de significação do que consiste realmente o fato do viver, o que, por outro lado, nos força a ter de apelar para a fé, a única forma que temos de encontrar um sentido para o fato de estarmos vivos, um fenômeno mais coletivo do que individual, um milagre que deve ser considerado cósmico e não apenas individual.

Enquanto a morte individual é cheia de considerações sentimentais, a morte coletiva é apenas uma estatística, fazendo perder o seu verdadeiro significado.  Ora, essa dialética entre o individual e o global é produto exclusivo de nosso espírito, pois a Natureza não tem como fazer essa distinção, o que nos leva a pensar na transcendência que possui nosso espírito em considerar mais importante os aspectos individuais do viver.

Minha morte é valiosa apenas para mim e para aqueles que me são próximos, enquanto as mortes endêmicas são apenas números, o que a recobre de importância em seu sentido individual, pondo em relevo a importância de eu existir, o que indica a concentração ontológica de que se reveste meu ser. Eis, portanto, uma evidência de que sou único em minha essência, e que a morte não faz perdê-la, um sinal forte de minha perenidade.

Assim, meu ser espiritual não aceita a morte como um fim, confirmando o fato natural de que na Natureza nada se perde, mas que tudo se transforma e enriquece, sendo ela apenas um processo de passagem a uma realidade etérea, livre dos condicionamentos materiais. Quem possui a graça de aceitar tais circunstâncias encontrou a razão por que vale a pena ter nascido, uma dádiva transcendente num mundo eivado de acasos aleatórios (?). Ao contrário, a lógica da ortodoxia nos garante que nada se dá por acaso, o que nos faz aumentar ainda mais a confiança de que em Deus estão as rédeas de tudo o que acontece no Universo. Dessa forma, o crente torna-se feliz por considerar sua vida valiosa, por ter encontrado o sentido dos valores que alcançou realizar, o caminho de sua redenção, que não se encontra neste mundo, mas na experiência diuturna de que o espírito é vida e espiritualidade.

  • Autor: acadêmico Antonio Celso Mendes
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: Pedro_wroclaw por Pixabay