Em Auckland, o monitor do avião se despede de mim com um superlativo mā te wā , see you later {que vem depois, menorzinho}.  Em solo, um imenso portal maori me recebe. Saberei, daqui a pouco, que o portal incondicionalmente wellcoming do aeroporto é um amaciamento da tradição. Amanhã, já em Dunedin, visitando o Museu Otago – onde tem estagiado nos últimos cinco meses – a Clara me mostrará o portal verdadeiro, entrada da wharenui, a casa comunitária de encontros maori.

Mas neste momento, na ressaca da viagem tumultuada – de longe, a mais complicada e estressante da minha vida de viajante errática – ainda não sei de nada disto. O que não empana uma emoção estranha na travessia desse portal, que começarei a compreender apenas amanhã. Compreender é modo de dizer; aliás, dos mais pretensiosos. Melhor exprimindo, emoção para a qual passarei a ter hipóteses policarpoquaresmianas.

Atrás das portas de verdade do wharenui – a casa comunitária de encontro maori – antes da vinda dos europeus no século XIX, a tribo se reunia quando aparecia no horizonte o barco que trazia visitantes polinésios. Ali aguardavam, atrás das enormes colunas de madeira entalhada com requintes de ourivesaria, ornadas com a representação dos rostos dos ancestrais, cujos olhos – revestidos com a madrepérola azul esverdeada da concha da pāua – ressuscitam quando calha de refletirem a luz.

No espaço sagrado em frente, o marae, acudidos pelo brilho dos olhos dos antepassados e com a retaguarda por eles garantida, assomariam apenas os guerreiros. Dos enormes, imensos barcos em que toda uma tribo viajava – igualmente entalhados com a mesma beleza e delicadeza – desceriam também os guerreiros da tribo que chegava. Sua bravura e honra seriam avaliadas pelos possíveis anfitriões, a quem caberia o “habite-se”:  toda a tribo migrante seria acolhida. Caso não passassem no teste, lhe restaria retomar a viagem em busca de outro porto.

Por toda a parte – no museu, na universidade, na cidade – as frases no inglês do colonizador que chegou depois estarão traduzidas para esse idioma estranho. É lei, me explicará a Clara. Nunca, jamais, achar graça de alguma das possíveis sonoridades. Nem de brincadeira mostrar a língua, perceber que alguns dos avós de córneas peroladas têm a língua para fora. É ofensivo e ameaçador.

Na entrada da universidade, cruzarei com duas mulheres com roupas étnicas e colares de flores na cabeça. Elas sorrirão com gentileza ante meu primeiro olhar curioso e me cumprimentarão, mas não devo olhar para elas uma segunda vez, da mesma forma que não devo fazê-lo quando encontrar um kiwi tatuado ou paramentado. Esta é a terra deles, e isto me será gentilmente mostrado pelas placas em maori, o tempo todo. No fundo, como deveria ser em qualquer lugar do mundo. O tempo todo.

A emoção estranha de Auckland – o portal entalhado e tecnológico, que em alguns lugares, com leds coloridos, simula um vitral e ressoa com um surrounding canto ancestral, espécie de mantra – tem a ver com o que começarei a perceber: parece que por aqui está muito bem posta a maneira como a altivez e o orgulho da tradição podem se mixar a uma sociedade dinâmica e moderna. Até desconfio que aquela como pré requisito para esta, como bem previa nosso pobre Policarpo, antes de seu triste fim.

Foi só um portal. A aventura ainda vai começar.

  • Autor: Acadêmica Etel Frota
  • Foto: Arquivo