Na sua origem história é legenda. Produto da imaginação e da fantasia humana diante dos mistérios da vida. Embora desde os primeiros tempos a história procure construir uma representação mais humana e mais próxima da realidade da vida, ela nunca vai se despojar do seu halo ou seu hálito poético, filho da imaginação e da própria inconstância humana.

E é assim como se quisesse completar a criação da vida ou corrigir seu destino. Embora a história seja sempre um projeto de visão geral da humanidade, sem deixar frincha ou espaço para dúvidas ou incredulidades, sempre haverá quem se disponha a corrigir ou completar seu rumo e o papel de seus protagonistas. E então, sempre haverá uma pergunta a mais a fazer, uma passagem a corrigir, uma incerteza a desfazer.

Na verdade, a história deve estar sempre confiada à inteligência e à idoneidade do historiador. Ele tem o compromisso conosco de dizer a verdade do que souber e transmiti-la com propriedade e isenção de espírito ou tendência pessoal. Isto é, sem torcê-la ou lhe dar sentido pessoal, diferente do que possa ter. Não basta, porém, a simples narrativa alvar e lisa. Mais importante do que isso é o papel que seu intérprete vai dar à sua revelação, para então inseri-la no seu contexto.

E é nesse ponto que a história tem assistido tanta discordância e tanta polêmica, na maioria delas vãs ou insólitas.

Não faz tempo um escritor francês fez sucesso de venda com o livro “Napoleão Bonaparte era mulher”. Outro deles editou “Cristo não existiu!”. Também o revisionismo de esquerda paraguaia tentou reabilitar Solano Lopes no papel de herói nacional, traduzindo sua Grande Guerra em uma agressão unilateral do Brasil, a serviço do capitalismo internacional e de sua própria ambição expansionista.

Há ainda outros temas mais comuns que só se prestam para alimentar a imprensa diária ou suprir o gosto do debate, como aquele entre o jornalista Medeiros e Albuquerque e o escritor português Agostinho de Campos sobre quem é hoje o verdadeiro dono da língua portuguesa: o Brasil ou Portugal?  Ora, somos nós, disse incisivo Medeiros, pois temos vinte vezes mais falantes que Portugal…

Outra disputa foi levantada por conta do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, em Portugal, que se propôs a fundar o “Museu da Descoberta”, em exaltação dos feitos portugueses no mar.

Houve reação e troca de desaforos, porque o título foi considerado euro centrista e exclusivo de um período da história e também porque descoberta mesmo não houve – a terra já existia. Portugal apenas invadiu e promoveu o genocídio da sua população indígena.

Aqui também assistimos a uma longa e dura refrega entre dois dos nossos melhores historiadores (que incluiu até cena e perseguição de rua), sobre  tema de nossa história regional.

De um lado David Carneiro e, do outro, o venerando Valfrido Pilotto, ambos já falecidos.  O tema foi o papel que o tenente-coronel português Afonso Botelho de Sampaio e Souza desempenhou no governo da 5.ª Comarca de São Paulo e fez dele precursor da criação da província do Paraná.

Afonso Botelho foi ajudante de ordem de seu primo D. Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, Morgado de Mateus, então no governo da capitania restaurada de São Paulo (1765-1775).

E foi assim que, no desempenho da administração da 5.ª Comarca que David Carneiro o imortalizou como o mais paranaense dos homens do século XVIII e o verdadeiro precursor da emancipação da província do Paraná.

Seu papel histórico ele o atribuiu à exploração dos nossos sertões, mediante a organização de sucessivas expedições, a demarcação de nossas terras e fronteiras, além da fundação de vilas e a ereção de igrejas. Ainda o fortalecimento de Paranaguá, a fundação de Guaratuba e a construção da fortaleza da Ilha do Mel. David Carneiro relacionou tudo isso e ainda acresceu outros tantos feitos, para que, no centenário da nossa emancipação trouxéssemos suas cinzas de Portugal, para receberem a consagração de todos os paranaenses.

Por sua vez, Valfrido não foi menos severo com David, tratando do episódio em três livros sucessivos e tachando seu opositor de mero sectário e cronista opinioso, além de lhe aconselhar tratamento clínico. Porém, embora Afonso Botelho fosse servidor realmente dedicado e competente, ele não passava de subalterno, um servidor do governo, e, o que é mais, cumpria os encargos que lhe foram determinados pela política pombalina de então, seja os da defesa do sul do país contra as incursões dos conquistadores espanhóis que mostravam se dirigir para a região mineradora de Minas Gerais.

O debate perlongou por anos e até deixou ressentimento, mas ninguém voltou a atiçar o tema, que, na visão de hoje e no evocar de Divonsir Beloto, nossa emancipação até se ressentiu da falta de estímulo e mobilização de uma liderança político-social local capaz de lhe dar o impulso necessário para vencer a resistência tribal das províncias vizinhas e dos sete anos que o projeto permaneceu no Senado, em estado de dormência (embora aprovado na Câmara em primeira discussão), para só depois alcançar sua aprovação final. Sem contar com o embaraço natural da disputa entre as duas principais cidades, que disputavam a sede da nova província.

Enfim, a história existe porque há quem conte. Entretanto, embora pareça às vezes que já não é mais a mesma, o esforço de repeti-la é ainda o método mais comum de saber de que lado está a verdade.

  • Autor: Acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: Arquivo
  • Imagem: Jan Mesaros por Pixabay (adaptada)