Quando a Editora Nova Fronteira publicou, em 1985, a vida e a arte do caricaturista J. Carlos, com texto de Álvaro Cotrim (Alvarus), a obra foi saudada como um verdadeiro sopro de vida nas artes plásticas do nosso país, que, de há muito, se ressentia de uma paupérrima bibliografia sobre a vida e a arte da ilustração em nosso país.

Vejo agora, 30 anos depois, que o Instituto Moreira Salles, do qual é um dos seus entusiastas e curador Cássio Loredano, se serviu novamente do chargista para estrear, na sua sede carioca, uma ampla mostra dos seus trabalhos, com o título: J. Carlos: Originais.

A escolha volta a ser representativa, sobretudo porque projeta as imagens dos primeiros decênios do século XX e a obra de reurbanização da cidade do Rio de Janeiro, por iniciativa de Campos Sales e Rodrigues Alves, pela ação do engenheiro Pereira Passos, do sanitarista Oswaldo Cruz e seus auxiliares. Foi o tempo da modernização da Zona Portuária do Rio, demolição de 1.600 velhos casarões, a abertura das grandes avenidas, como a Rio Branco e a Atlântida de Copacabana, a remoção dos cortiços para a periferia. Enfim, com o crescimento populacional, a vinda do imigrante e a remodelação da cidade, ela passou da condição de “Porto Sujo”, ou de “Cidade da Morte”, como era vista, para a de “Cidade Maravilhosa”, famoso centro internacional turístico e de comércio.  J. Carlos, como se pode ver, retratou grande parte desse quadro social que participou da mudança.  E tanto mais fez, para compor sua reconstrução, não só pelo desenho de humor, mas recompondo um verdadeiro painel de arte gráfica e caracterização social. Fez crônica social.  Foi designer gráfico e nos deu uma visão criativa dos diferentes atores da vida e da sociedade carioca do seu tempo.

Fui seu fã desde os primeiros tempos da adolescência e levei esse encanto por toda a vida. Encanto pela beleza das capas em arte-décor e as ilustrações dos textos da “Careta”, revista de humor onde trabalhou maior parte da vida e em cuja mesa de trabalho morreu. Mas participou de todas elas, como O Malho, Fon-Fon, O Cruzeiro, Paratodos, A Noite, O Papagaio, Caretex e tantas mais. Enfim, reinou soberano em toda a imprensa brasileira, e deixou inúmeros seguidores Theo, Oswaldo, K.Lixto, Raul.

  1. Carlos era, na verdade, José Carlos de Brito e Cunha, nascido no Rio de Janeiro (1884-1950), e ao que consta, de antepassados da corte portuguesa e, por parte da mãe, da nobreza do Império. Embora de uma educação bem cuidada, foi um autodidata da arte. Estreou em O Tagarela, em 1902, e já no ano seguinte assinava a capa para o mesmo semanário, privilégio somente outorgado aos mestres consagrados.

Seu estilo foi modelo e referência plástica superior, pelo traço versátil, elegante e sintético das figuras. Tinha a visão do cronista social. Criou tipos permanentes como a melindrosa, um clássico do culto à mulher, esta plenamente feminina, sexy, descontraída. Não precisava dos atavios de sua avó. É a carioca solta da praia e o encanto do salão, com toda sua plástica e sua graça de mulher.

Entre outros tipos inumeráveis, criou também o Almofadinha, que é o companheiro da Melindrosa, de hábitos afrancesados, sem ser maricas, usa chapéu de feltro ou palhinha, tem óculos de tartaruga e um certo ar intelectual. É o companheiro inseparável da Melindrosa.

Aquele tempo era o da predominância do paladar francês em tudo: nos figurinos, na literatura, nos costumes e na arte e suas abstrações, como o cubismo, futurismo, dadaísmo e outros pruidos artísticos. O cenário de J. Carlos, porém, era o do homem comum, aquele do dia-a-dia, com sua graça e sua malícia. É o que aposta no jogo de bicho e entra na roda do carnaval. Nisso ele se parece com o homem americano de Norman Rockwell: é povo, da classe média, só que o “yankee” é mais compenetrado dos deveres da cidadania e da religião. E, assim, na busca da imagem do povo, J. Carlos foi criando tipos populares: o Jujuba, Carrapicho, Juquinha, Borboleta, Gibi, Lamparina, etc. E, à procura das expressões dos outros foi buscar a imagem de Mickey Mouse: o primeiro brasileiro que o desenhou na capa de revista e peças publicitárias. Em 1942 Walter Disney veio ao Brasil e se encantou com seus desenhos e o convidou para Hollywood. Jota não foi, mas fez uma charge do seu papagaio pronto para partir para os Estados Unidos. Ora, foi a inspiração para Disney criar o Zé Carioca, um modelo do nosso carioquismo. Ora, completando: se foi o alemão-americano Thomaz Nast quem fez o símbolo de Tio Sam, como modelo americano; e John Bull a figura do inglês, sugerida por Arbuthnot, assistente da rainha Ana, também o Jeca Tatu, como símbolo iconográfico nacional saiu da pena de Monteiro Lobato, mas foi criação gráfica de J. Carlos, a partir de uma apóstrofe de Rui Barbosa, durante a famosa campanha civilista.

Enfim, é tudo que sei para homenagear J. Carlos o cronista visual de um tempo que Nassara chamou de “século boêmio” e que, para Alvaro Moreyra (o Alvinho), sempre será lembrado, mesmo daqui cem anos como um tempo único de graça e beleza.

  • Autor: Acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: Arquivo