Só não é nosso o que ainda não aconteceu

 

Os judeus têm a palavra haftará (permissão ou despedida) para designar trechos proféticos lidos nas sinagogas depois da Torá nas manhãs de sábado, do Hebraico xabbat, descanso, cujo étimo está em sábado, que, ao lado de domingo, compõe a dupla que não sucumbiu ao “feira” de todos os outros dias.

A Lua, Marte, Júpiter, Mercúrio e Vênus foram substituídos por feria secunda, feria tertia etc., o que viria a dar no Português segunda-feira, terça-feira etc. A mudança começou no século VI, na Galícia e em Portugal.

O primeiro registro de segunda-feira é a lápide de uma ermida trazida para a igreja de São Vicente, em Braga, cuja inscrição informa ter a defunta morrido a 1.º de maio de 618, “dia de segunda-feira, em paz, amen”.

Abro esta conversa à la haftará porque são constantes as referências à herança judaica do Ocidente, cuja evidência maior é best seller número um do mundo, a Bíblia.

Num texto muito curioso de Otras Inquisiones, intitulado De alguien a nadie, Borges diz que o sujeito da primeira frase do Gênesis é o plural Eloim (Deuses), ainda que o verbo esteja no singular: “No princípio criou Deus os céus e a terra”. Leiam-se “Deuses”, pois foi Eloim o Criador.

Muito antes de Borges, o herege luso-brasileiro Pedro de Rates Henequim destacou que o Gênesis é claro com este plural: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. Se é façamos, disse ele, é mais do que um.

Interrogado por diversos inquisidores, disse que as pessoas divinas eram sete, o Paraíso ficava no Brasil, o fruto do pecado original tinha sido a banana, e o idioma do Céu era a língua portuguesa. Foi executado em 1744, aos 64 anos.

Talvez o primeiro erro de nosso tempo seja a velocidade. E o segundo a falta de silêncio. Coisas da modernidade líquida de que falava o filósofo e sociólogo judeu-polonês Zygmunt Baugman, falecido em 2017, aos 91 anos.

Antes dele, o nosso Machado de Assis trabalhou com o mesmo conceito ainda no século XIX. E antes de nosso maior escritor, o Eclesiastes, escrito no século X a.C., diz: “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo sob o sol”.

Seguem dois excertos, um de Machado de Assis, outro de Borges, para que degustemos como aperitivos antes de voltar ao que cada um fazia.

De Machado de Assis: “Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos.” (A Igreja do Diabo).

De Borges: “Una comunidad de musulmanes fue instigada por los demonios a reconocer a Mahoma como Dios. Para aplacar el disturbio, Mahoma fue traido a los infiernos e lo exibieron. En esta ocasión yo lo vi. Se parecía a los spíritus corpóreos que no tienen percepción interior, y su cara era muy oscura”. (El doble de Mahoma).

Como se vê, sempre houve muitos deuses, ontem como hoje, que, a seu modo deixaram suas marcas no tempo deles, que é também o nosso, pois já aconteceu. Só não é nosso o que ainda não aconteceu. Mas será. Será? (fim)

 

*membro honorário da Academia Paranaense de Letras, o catarinense Deonísio da Silva integra a bancada brasileira da Academia das Ciências de Lisboa (Classe de Letras), mora no Rio de Janeiro, e estreou como escritor no Paraná. Seu livro mais recente é “Stefan Zweig deve morrer” (www.almedina.com.br).
  • Autor: Deonísio da Silva
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