O vento gelado, naquelas madrugadas londrinenses, beliscava os lóbulos e soprava em nossas orelhas palavras quentes do vocabulário imberbe: alegria, paixão, coragem, namoricos, namoros, solidariedade e vida. Ou tudo o mais para doces jovens. Os sons de 1968 em Paris e as vozes roucas de Woodstock ainda ecoavam, feito cicatrizes que permaneceriam nos sonhos e posturas de tantos e tantas.

Para o frio, tínhamos “lareiras” – música, café, leitura, conhaque, estudo, poesia em olhares e nos vocábulos, juventude e compromisso com a crença em um mundo menos babaca, menos cinza. Afinal, enquanto cresciam nossos cabelos ocorria o mesmo com o detestável dogma de/da ditadura e nossa aversão ao dito cujo.

Cada um, fora o curso escolhido na universidade, estudava à sua predileção: economia, política, história, artes… Eu gastava os olhos em literatura, especialmente a brasileira e latino-americana. A unidade apartidária, porém, era notória entre quem participava do bando, fosse pertencente a algum partido, da direita à esquerda, ou a nenhum (meu caso, por exemplo): todos eram contra o tal regime de exceção. E sempre avessos à adoração à morte, que, aliás, voltou, desgraçadamente, à moda nestes tempos de agora.

Alguns de nós, engajados na profissão, o jornalismo, que já abraçávamos e abraçaríamos sempre com paixão, tínhamos mais um motivo, entre tantos, para, junto a todos, desafiar aquelas madrugadas: pautar, pensar, elaborar, levar às impressoras e distribuir o jornal “Poeira”, nascido de um verso de Paulo Vanzolini. Um jornal para se levantar contra os desmandos dentro e fora da universidade.

Nos reuníamos em vários locais, em salas do Centro de Estudos Superior de Londrina (Cesulon), na(s) casa(s) do Diretório Central dos Estudantes (dentro do pátio do colégio Hugo Simas), no Restaurante Universitário, nos diretórios setoriais. Não tínhamos uma só cara, mas centenas de caras. Ou um só rosto, mas centenas deles.

A cidade borbulhava, dia e noite, em todas suas manifestações – da política às artes etc. Londrina ereta postou-se e era libertária.

De lá para cá, muito mudou. Há de tudo, de forma diversa. Alguns de nós, infelizmente, faleceram. Outros mudaram de rumo, ou procurando outras bússolas ou assumindo exatamente o que combatíamos. Muitos evoluíram em seus procedimentos e, embora mantenham as chamas daquelas quase manhãs, adotaram outras posturas ou hábitos. Assim é a vida. Segundo Darwin, a espécie evolui, mas nesta evolução há avanços e tropeços, não há como disfarçá-los. Londrina mesmo mudou (e muito) e as estruturas econômicas (e seus meandros), como lembrava o publicitário norte-americano James Carville, talvez possam explicar.

De lá para cá, com todos os solavancos da maré política, houve evoluções. Sim, houve. Naqueles tempos de outrora (há cinco décadas!), o reitor da então Fundação Universidade Estadual de Londrina (FUEL) era indicado pelo governador de plantão, que, por sua vez, era escolhido pelo Presidente da República de plantão, que, por sua vez, era indicado pelo Alto Comando das Forças Armadas. Nos tempos de agora, o reitor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) é escolhido pela comunidade universitária, em eleições diretas; no pleito deste ano foram quatro chapas concorrendo. E uma delas foi escolhida no primeiro turno. É o tal do costume democrático pelo qual tanto nos empenhávamos. Por esse detalhe, valeu a pena.

O vento despenteava nossos cabelos e desarmava nossos temores e tristeza para suportar o sangue escorrido no país e plantar esperança em nossos olhos. E de qualquer forma, ao lembrar daqueles friorentos ventos soprantes em vitrôs quebrados de uma das salas onde nos reuníamos, não há como não entender que são marcas do que ficou. Aquelas madrugadas gestaram, com erros e muitas virtudes, o mais amplo e aguerrido movimento universitário de que se tem notícia no país. E centenas de pessoas com apurado senso de cidadania e compromisso com a vida em todo o mundo.

Foi lindo tudo aquilo.

  • Autor: acadêmico Nilson Monteiro
  • Foto do autor: redes sociais
  • Imagem: arquivo pessoal