Ter boa memória é lembrar todos os fatos e pessoas que estiveram presentes em algum momento da vida? Ter boa memória é alguém ser capaz de esquecer e guardar apenas o que, tendo sido vivido, foi significativo? Ter boa memória é ser capaz de dizer de cor toda a tabela periódica de química, as fórmulas de física, as capitais africanas, os números primos e/ou os diferentes empregos do que? Ter boa memória é poder rapidamente reproduzir as músicas, ouvidas no streaming, as jogadas clássicas de xadrez e/ou as melhores cenas do HQ de Neil Gaiman ou de Scott Snyder?

As respostas podem ser sim para todas as questões. Podem também ser uma combinação de sins, nãos e talvezes. No fundo profundo, as pessoas sabem de que memória tratam quando dizem Ele tem uma memória de elefante (mesmo que não se saiba exatamente o porquê do elefante, e porque não a formiga ou o rato)”. Mas é absoluta admiração, com uma ponta de inveja, que faz alguém dizer: “Ela consegue gabaritar a prova de (ponham aqui a disciplina que lhes parecer a mais difícil) porque sua memória é irada, fantástica, super!”.

Estudos científicos cada vez mais acentuam o quanto a leitura pode diminuir o risco de uma doença, como o Alzheimer, que afeta as conexões cerebrais. No entanto, por várias razões físicas (olhos, coluna, enxaquecas, sonolência) e culturais (analfabetismo, desestímulo à leitura, depressão) os idosos brasileiros pouco leem. Pesquisa recente do “Retratos da Leitura no Brasil” comprova que , entre 50 e 69 anos, 17% das pessoas leem livros e após os 70 anos, a proporção cai para 3%! Não é somente a falta de companhia de gentes, é também a falta da companhia dos livros que falam de outras gentes, de outras realidades, de vidas imaginárias e de abertura a outras expectativas. Trocam, na velhice, o outrossim pelos nãos depressivos.

Na outra ponta das biografias, é de supor que os mais jovens leiam. Nem pensar! Jovens entre 14 e 24 anos são leitores de livros na proporção de 9 a 14%. Depois dessa idade é um carrossel de emoções, um tobogã de índices, ladeiras abaixo e ruelas acima, escorregando cada vez mais para o vale do desinteresse. A expectativa de que os jovens, motivados pela escola ou pela necessidade de formação profissional etc. etc., seriam leitores mais assíduos, resulta na fórmula que os antigos chancelaram: Ledo engano!

Sempre achei linda essa expressão, porque pensava, na adolescência, que Ledo deveria ser o masculino de Leda e o termo seria o nome de um lindo rapaz meio dado a trapaças. Depois descobri, um tanto decepcionada, que “ledo” era uma evolução de “laetus”, alegre. Pensei então que os enganos podem não ser decepcionantes. Assim, associei essas palavras à ideia de que jovens que não leem são alegres enganos!

Tipo assim (copio aqui um modo juvenil de falar e enganar): “Ler toma tempo e para ler tenho que ficar isolado; senão não entendo o que leio.”. “A concentração é muito chata porque é preciso deixar de pensar em outros assuntos mais interessantes: os amigos, as baladas, os flertes, os games e tudo o mais.” Mas tudo isso é um ledo engano!

A falta da leitura torna as pessoas dependentes da opinião de outros, ou seja, há uma perda de autonomia, que só cresce à medida que o tempo passa.

A falta de leitura sujeita as pessoas a verem o mundo e a realidade dentro de perspectivas muito fechadas, o que favorece os preconceitos de todos os tipos.

A falta de leitura me aproxima mais ainda dos animais que não têm visão de futuro: tudo é muito o tempo presente. Para projetar um tempo melhor, são necessárias a informação, a reflexão, a organização e a imaginação. Quem não lê e não sabe, dificilmente irá procurar esses atributos na leitura de livros. Sim, porque as redes sociais são lugares de total superficialidade. Acrescida atualmente na novidadeira fonte de notícias falsas, destinadas a engambelar mentes ociosas.

A falta de leitura – ocasionada pelas mais diferentes desculpas e subterfúgios – é um ledo engano da juventude viciada no tempo presente e na dependência das tecnologias.

E o que tem a memória a ver com a falta de leitura? Simples. Se começo a ler uma história, preciso da memória das letras, dos significados primários das palavras, de lembrar na página 20 que o personagem tem este ou aquele nome, fez isto ou aquilo, mora em tal lugar. E estas informações ficaram na página 1! Se não lembrar, será necessário voltar ao começo do livro.

Há pessoas que são verdadeiros ledos da memória: decoram versos, trechos de livros, nomes de autores, títulos de obras, contam até partes da biografia dos autores! Não é preciso tanto.

Mas se eu continuar a ler, certamente terei o que contar, porque se a memória não me falha, tudo o que escrevi acima aprendi nos livros que li e guardei na memória. Guardei até o engano da palavra ledo!

Aprendi também que a memória tem uma entidade protetora, que se chama Mnemosine e vem lá dos gregos. Bem que ela poderia se chamar Leda, a alegria.

 

*Crônica publicada originalmente no site da editora Olho de Vidro, em 2017, revista e aumentada para a edição 2021 da Revista da APL.

  • Autor: acadêmica Marta Morais da Costa
  • Foto: cedida pela autora
  • Imagem: 愚木混株 Cdd20 por Pixabay