Já tratamos recentemente da presença entre nós de Peter Burke, em maio último, na IV Conferência Estadual de Bibliotecários, ocasião em que ele até fez uma conferência sobre o tema que, lamentavelmente, nos sonegaram a notícia.

Burke é polímata, mas principalmente historiador social e catedrático de História Cultural da Europa das Universidades de Cambridge e Essex, na Inglaterra. Foi professor visitante de Princeton, nos Estados Unidos e da Universidade de São Paulo. É casado com a historiadora Maria Lúcia Garcia Pillares-Burke, em cuja parceria publicou “Gilberto Freyre, um Vitoriano dos Trópicos”, que o tornou um dos maiores especialistas no sociólogo pernambucano. É versado em História e Política Social do Brasil e mantém permanente interesse e participação em tudo quanto diga respeito à nossa terra. Durante 12 anos manteve sua participação na imprensa nacional, publicando artigos na Folha de São Paulo, um jornal que alcança uma tiragem de mais de um milhão de exemplares, razão pela qual tem merecido o título de “basilianist transitório”. Estes artigos vão servir para compor a edição mais recente do seu “O Historiador como Colunista”, uma publicação que inclui mais de 70 crônicas de história cultural e social, grande parte delas sobre o Brasil. Aliás, como diz seu apresentador, na verdade o livro foi feito para leitores brasileiros, pois mesmo que o tema não seja propriamente sobre o Brasil, tem algum ponto de trato ou aproximação com nossa história e nossos costumes.

Sobre um ponto de vida, porém, ele é realmente particular: a visão de um intelectual inglês sobre nossa imagem histórica e os traços de nossas desigualdades, responsáveis pela nossa projeção externa, aos olhos do mundo. Somos realmente um caldeirão racial, uma nação arco-íris, um país desigual e violento?

De 1994 a setembro de 95, Burke foi professor visitante de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e, como típico europeu, deixou lembrança de sua primeira impressão da cidade, caminhando a pé pelas ruas, então dominadas pelo cheiro adocicado dos gases dos escapamentos dos carros a álcool. Tentou localizar o centro da cidade e foi topar na Avenida Paulista, uma artéria glamorosa, movimentada, mas nunca um epicentro. Notou que havia poucos cafés de calçada, para animar os encontros e as bisbilhotices diárias. Eram muitos os restaurantes italianos, mas poucos falavam a língua da Itália, tal como era na sua Londres. Viu que à uma hora da madrugada ainda havia fila do lado de fora dos restaurantes de luxo e, no diário as pessoas mais discutem do que conversam, e, ainda falam todos ao mesmo tempo, uma arte difícil para um inglês praticar.

O livro é batizado de ensaios da Folha ou para a Folha. Porém são crônicas que, para Angel Curria-Quintana, habitualmente se atêm à superfície de temas mais sérios.                                É o que ele diz: as crônicas simplificam questões complexas e trivializam ideias importantes. O modelo é o essai de Montaigne, de rica tradição cultural: textos curtos e variados assuntos. Não é assim, porém, com Burke, ele enobrece o tema por mais banal. Ele o enriquece e o adorna de cores. Dá diferentes sentidos e usos. Ele é professor de História da Cultura Europeia e foi dai que surgiram nossos hábitos mais comuns. Assim, o carnaval que hoje identifica o Brasil e o Rio de Janeiro, é, entretanto, artigo importado. No século XIX era de Nice e no século XVIII de Roma e Veneza. A olho grosso, era uma forma de licenciosidade consentida. Como já tive a oportunidade de dizer: carnaval vem do latim carne vale, ou seja: adeus à carne. A etimologia é obscura, mas identifica o chamado espírito momesco, como uma oportunidade para descarnar. Comia-se, bebia e se fazia amor. Do lado religioso, porém, correspondia a um ritual cristão, com ênfase na carne, na bebida e no sexo como uma preparação para o jejum da Quaresma.

Nosso futebol, também só chegou em Santos em 1894, com Charles Miller, trazendo duas bolas de futebol. A prática do futebol já chegara antes na Argentina, trazida por homens de negócios britânicos e seus filhos. O primeiro jogo documentado foi o de Buenos Aires em 1867; só anos depois a prática futebolística passou para o Uruguai e ao Brasil.

No campeonato mundial de 1939 Gilberto Freyre descreveu o estilo do jogador brasileiro de “africano”, marcado pela surpresa, a manha e a ligeireza, assim como se o jogador “dançasse com a bola”. Gilberto classificava o futebol brasileiro como “dionisíaco” e ao inglês chamava de “apolíneo”. Já os argentinos, porém, foram mais diretos: o futebol dos ingleses era mecânico, disciplinado, enquanto o dos criollos, mais espontâneo e individualista.

Enfim, “O Historiador como colunista” é igualmente um livro para brasileiros. A presença do Brasil ressumbra de tudo, de suas crônicas e suas notas avulsas. Faz esboços biográficos e tem juízo crítico sobre nossos maiores valores. Assim, vê Sérgio Buarque de Holanda em duas trajetórias, antes e depois de “Raízes do Brasil”. Um era o jovem precocemente intelectualizado e articulado no jornalismo, o outro o acadêmico da história econômica e orientador dos doutorandos de História. De Gilberto Freyre fez a biografia intelectual que o revelou ao mundo que fala inglês, como jamais foi feito.

Assim, como se vê, ele é de casa…

  • Autor: Acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: Arquivo