Os maiores momentos de sedução de minha infância, nos domingos à tarde no circo dos Irmãos Queirollo, na Praça Carlos Gomes, eram as faces brancas da maquiagem, a vestimenta negra (o fraque), a destreza das mãos e a cartola do mágico. Elas dançavam em retas e curvas, para cima e para baixo, enquanto os dedos puxavam do grande e brilhante chapéu de veludo preto a variedade colorida de lenços, flores, bonecas e até mesmo coelhinhos agitados agarrados pelas orelhas. Eu me perguntava: “Como é isso? Tanta coisa não cabe no chapéu”.

Essas imagens vêm à lembrança com a leitura do terceiro volume da Poesia Reunida, de João Manuel Simões, publicadas no decênio 1980-1990. Poemas de um heterônimo crí(p)tico, Poemas da infância, Canto plural ou tentação de Ícaro, Lira de Dom Quixote Flauta Mágica, formam a constelação de palavras com o mundo intermediário do autor, pleno de figuras, lugares e tempos. Na imaginária e fluída percepção da Comédia – que Erich Auerbach (1892-1957) concebe como “um poema didático enciclopédico, Simões antevê a existência de uma Santíssima Trindade Poética apresentando “Virgílio: foi esse o Pai. / E Dante o Filho. / Entretanto, / depois deles sobressaiPessoa, O Espírito Santo.”

A Constituição declara que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança (e também ao adolescente), com absoluta prioridade, direitos fundamentais a partir do direito à vida, alimentação, educação, saúde e outros também relevantes. Certamente o legislador pensou em seu tempo de infância ao fazer esta promessa que infelizmente não é cumprida para milhões de criaturas. Mas o poeta não esquece a criança feliz quando o soneto abre o “inventário da infância” que também pode ser encontrado nas “memórias de um menino”: “Trouxe da infância rosas e manhãs / e tarde parecendo a vida inteira, / ribeiros, prados, pássaros, maçãs, / papagaios erguidos na ladeira, / a velha casa, e entre muitas vãs / aquarelas, a imagem verdadeira / do velho avô com suas puras cãs, / sentado, absorto, à sombra da figueira. / Trouxe da infância (de além-mar!) brinquedos, / trens, carrosséis, bonecos, instrumentos oníricos / da orquestra da lembrança. / Trouxe comigo caixas com segredos, / bolas, contos, piões, latins, inventos / duma inquieta – que fui e sou – criança”.

A palavra está na cartola do poeta. Rebuscada pelos dedos da mão direita ele desenha no ar com a mão esquerda os versos de “O menino que eu era / morreu há muito. / Assim, / acabou-se a quimera: / eu sou órfão de mim

ponte de ouro entre o pensamento e a escrita; entre a geração e o termo; o conteúdo e a forma; o espírito e a criação é a palavra, o fenômeno mágico da comunicação do ser humano, assim glorificada nos versos de Simões, que desfilam numa passagem de sua Poesia ReunidaÉ preciso, portanto que eu invente, / como quem executa uma alquimia, as palavras, o sangue do poema”.

E assim caminha o nosso vate pelas frestas de uma quarta dimensão da existência. Ele enxerga a Boca Maldita e o contingente de insurretos buzinando contra a ditadura e os prebostes dos governos. Pergunta pela Maria do Cavaquinho: “Por onde anda, por onde, / andante, ondeante, / com seus amuletos e andrajos, / a dedilhar o instrumento glorioso?”  Não muito longe, nem muito perto dá de frente com o Esmagaa fonte irreverente do jornalista Mazza, “figura de profeta, muito embora / sem barbas brancamente fidedignas. / Traz na ponta da língua sempre / a última catástrofe, / o óbito mais recente”.  De uma das trincheiras da Boca Esmaga era a gargalhada de alto decibel, o sarcasmo da verdade e a estocada perfurante na honra dos corruptos e outros personagens que caíssem em sua alegre rede de intriga e maledicência.

Enquanto isso, o mágico continua retirando do chapéu um imenso e luminoso colar de palavras para compor alegria, tristeza, amor, saudade, melancolia e tudo o mais que fazem pensar sobre o elo entre a vida, a morte e a ressurreição.

Respeitável público! Senhoras e senhores! Meninas e meninos! Sejam bem-vindos! O circo está chegando!

  • Autor: Acadêmico René Ariel Dotti
  • Foto: Arquivo