Em 11 de agosto de 1827, D. Pedro I sancionou a lei da Assembleia Geral que criou os cursos de ciências jurídicas e sociais no Brasil: um em Olinda, instalado no mosteiro de São Bento, depois transferido para Recife (1854); outro na cidade de São Paulo, no convento de São Francisco

Até então só se obtinha formação jurídica na Europa, de preferência em Coimbra (para os brasileiros), e, então, diante da escassez de bacharéis na Colônia a atividade comum da justiça era habitualmente confiada aos rábulas, que, embora sem habilitação acadêmica, se mostravam aptos para o trabalho forense, tanto para o exercício de função pública como na promoção de interesses particulares, como os da advocacia.

A magistratura colonial era então composta por juízes de fora, com formação jurídica, nomeados pelo rei, quanto no geral, por juízes da terra, mediante eleição, que incluía gente comumente ignorante das letras e das leis.

Durante o período da Colônia vigoravam as Ordenações Filipinas, ou Código Filipino, resultado da compilação e reforma da legislação portuguesa vigente naquele país até 1867, adotada também pelo Brasil, após a independência, quando prevaleceu até a adoção do nosso primeiro Código Civil, em 1916.

Naquele primeiro tempo, o exercício da advocacia era concedido independente de graduação aos candidatos a provisionados, rábulas e solicitadores judiciais, mediante exame público prestado ao presidente dos Tribunais de Relação, com a expedição da carta de provisão válida por dois ou quatro anos, renováveis. Mas essa licença só era válida paras cidades onde não houvesse letrados ou seu número fosse insuficiente.

O rábula, porém, não foi só criação nacional, há notícia deles na Europa desses primeiros tempos, para só citar, à mão, o jurisconsulto italiano Ibério, da Universidade de Bolonha, autodidata que se tornou luminar da ciência jurídica, como Lucerna Juris (luminária do Direito).

No Brasil, tivemos o primeiro deles ainda no tempo do descobrimento (1531), um degredado de Portugal,  referido como “ bacharel de Cananéia”, encontrado convivendo com os índios carijós, como se pode incluir também o beato Antônio Conselheiro, líder missionário da tragédia de Canudos, que deixou o legado de 5 mil soldados mortos e quase 25 mil dos sertanejos; mas, mesmo assim, hoje se procura resgatá-lo como rábula de militância forense, e se veja nele a figura de um líder missionário de uma  epopeia de exaltação e coragem sertaneja.

Tivemos, entretanto, tantos outros deles, de presença permanente na vida judiciária do país. Em geral, filhos de famílias pobres, negros descendentes de escravos, como Luiz Gama, filho de Luiza Mahin, africana da Costa Mina, cujo menino de 10 anos o pai, fidalgo português, vendeu no mercado de escravos, para pagar dívida. Trazido para o Rio de Janeiro, o garoto foi analfabeto até os 17 anos e, por seu próprio esforço, se tornou um expoente da tribuna forense e ardoroso abolicionista. Tentou estudar Direito nas Arcadas paulista, mas foi rejeitado por ser negro. Dizem, porém, que diante disso passou a frequentar a biblioteca da Faculdade para adquirir sua formação jurídica. Oferecia-se pela imprensa para sustentar gratuitamente a defesa todas as causas da liberdade. De uma vez só libertou mil escravos invocando a Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831, que declarava livre os escravos vindos de fora do Império desde aquela data.

Morreu em 1882, alegando que deixava seu legado de miséria como o maior apanágio de sua virtude. Seu enterro chegou a produzir manifestação popular.

Amaro Cavalcanti foi um dos treze filhos de um mestre-escola de Caicó (RN) alfabetizado pelo próprio pai. Começou no comércio mas, por aplicação aos estudos, se tornou professor de latim e rábula local. Porém, com seus envolvimento em movimentos culturais e relações no Ceará, resultou ser comissionado pelo governo da província para fazer estudos do sistema de educação primária dos Estados Unidos, onde, durante sua permanência, se matriculou na Albany Law School e recebeu título de doutor em Direito, que a Corte Suprema converteu em counsellor at law, com o direito de exercer a advocacia. Passou então a cumprir uma longa carreira de desempenho da maior importância em funções políticas e administrativas do país, que incluíram o Ministério da Justiça e da Fazenda, o Senado Federal, o Supremo Tribunal e o cargo de juiz do Tribunal Arbitral de Haia. Produziu inúmeras obras jurídicas e de caráter financeiro, e foi um dos subscritores da Constituição Federal de 1891.

O rol oferecido por Pedro Paulo Filho (“Famosos Rábulas…”) inclui também a presença de Cosme de Faria, o “Major” por patente da Guarda Nacional, alcunhado “Tigre da Alfabetização”. Seu escritório eram duas cadeiras no corredor da Igreja de São Domingos, onde atendia de 25 a 30 pessoas por dia. Viveu assim, até os 97 anos e o plenário da Câmara de Vereadores de Salvador é hoje encimado pelo seu nome.

Outros nomes também podem ser lembrados, como Quintino Cunha, baixinho e míope; João da Costa Pinto, o negro Basílio, que tinha só o primário e era estivador no cais (“chifrador de sacos”). Bem apessoado, foi dotado de um discurso seguro e insinuado por um vivo espírito brejeiro e irônico. Morreu na tribuna do Júri, aos 48 anos. Tem também Manoel Vicente Alves, o folclórico “Jacarandá” do foro do Rio, de cavanhaque, fraque velho, monóculo e cravo na lapela e, ainda podemos incluir o próprio João Fernandes Café Filho, rábula aos dezoito anos, muito antes, portanto, de ocupar a presidência da República.

Por fim, nossa homenagem a Antônio Evaristo de Morais, certamente o maior personagem e parte mais rica do capítulo da história da advocacia leiga do país. Foi menino de origem muito humilde mas se converteu no maior advogado criminalista do seu tempo. Fez estreia no Júri em 1894, como rábula, para se graduar em Direito só 23 anos depois, aos 45. Atuou em julgamentos do Júri da maior repercussão social, como a “Tragédia da Tijuca”, “A Tragédia do Icarai” a “Tragédia da Piedade” “O Crime de Gilberto Amado”. Evaristo não foi, porém, apenas um advogado criminalista, mas também professor catedrático de Direito e autor de múltiplos trabalhos de criminalidade e história criminal, inclusive da sua vivência pessoal, além homenageado como um dos principais autores da legislação trabalhista, precursor da lei de acidentes do trabalho. Morreu pobre, não deixou imóvel; seu legado foi o de dez contos no Banco Boavista.

Não tenho estatística do número de rábulas que tivemos. Porém, segundo Levi Carneiro, eram dez mil no Rio Grande do Sul, por ocasião do Regulamento da Ordem. De todos, porém, quase ninguém deixou livro, obra, trabalho ou discurso que sirvam para avaliação de sua qualidade e valia.  Em geral eram homens simples e de poucas luzes. Certa feita o ladrão roubou o dinheiro das esmolas da igreja do Senhor do Bonfim, e Cosme de Faria foi que fez sua defesa no Júri, alegando, no entanto, que não houve crime, senão apenas um milagre do Santo, que não precisa de dinheiro; ou, quando Luiz Gama, na defesa de um réu preto, adverte na sua peroração que tudo naquele julgamento era preto: preto era o réu, preto o promotor e preta a pretensa vítima. Que têm, portanto, os brancos com isso? E conclui: “Mandem embora este desgraçado!” Por fim, o rábula Alberto de Carvalho saltou da tribuna e cobriu a cabeça do réu de poucas letras e luzes, mas entre eles sempre houve alguém mais manhoso, que participava dos julgamentos populares com tiradas de graças ou frases de efeito e espírito, assumindo até postura arrogante diante das solenidades oficiais, para o efeito de quebrar formalidades, conquistar a simpatia de juízes ou para só exibir suas excentricidades. Entretanto, muitos de seus testemunhos passam a atribuir a essas singularidades a manifestação de dotes de particular inteligência ou engenho, que serviram de centelha de luz ou chave de ouro para abrir a porta das absolvições mais fáceis, como vimos no caso do ladrão de esmolas da igreja do Se com sua beca: para protegê-lo das injúrias e blasfêmias proferidas pelo promotor!…

Esse o retrato simples da justiça desses velhos tempos, prestada por nossos rábulas que, embora tantas vezes mais simples na forma, trouxeram do povo, entretanto, a mesma seiva de sentimento de justiça e confiança nos bens da vida, que vão servir para a construção de um mundo certamente mais rico e aparentemente mais sábio como os dias de hoje.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
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