Resolvo que vou resolver tudo o que está em atraso. Daí resolvo que as resoluções são complicadas, porque nem tudo dá pra fazer à distância. E deixo pra depois das quarenta semanas.
Resolvo que vou limpar novamente a casa, aquela geral que antes a gente só fazia no Natal ou na véspera do aniversário. Daí resolvo que estou mais é com vontade de ver um filme, mesmo que seja classe B.
Resolvo que vou fazer dieta porque nem as roupas do tempo em que bati recordes na balança conseguem fechar zíperes, colocar botões nas casas correspondentes, enfeitar-se com cintos sem precisar novos furos. Daí resolvo ir pra cozinha fazer aquela moqueca caprichada, camarões saltando da panela e das moquequeiras por falta de espaço; molho em cascata dendezeira a inundar os pratos e aquela porção de farinha que só os antigos moinhos ainda produzem.
Resolvo que vou escrever pros manos que andam recolhidos e preocupados com filhos e netos, como eu e como a maioria das mulheres que levam a sério a maternidade e a neposteridade. Daí resolvo que mandar uma mensagem de voz pelo Whats é suficiente.
Resolvo que vou entrar no Face pra saber dos amigos, mandar mensagens e responder a todas as postagens. Daí resolvo que ando meio cansada da publicidade que inunda a plataforma e que é melhor deixar quieto.
Resolvo que vou começar a fazer uns exercícios de alongamento, tipo terceira (melhor, quarta) idade e preparo halteres com garrafas de água, elásticos, um cabo de vassoura, uma esteirinha chinfrim e boto aquele Adidas meio velhinho pra poder me esbaldar sem comprometer as costuras. E aquele tênis Reebok crossfit abandonado. Daí resolvo que sem personal não dá pé, nunca vai dar. E depois até o ar anda rarefeito; com certeza terei tonturas.
Resolvo que vou ler aquele volume do Philippe Ariès, “O homem diante da morte”, de 837 páginas, que me fita descaradamente lá da estante, me desafiando e me chamando de covarde porque não quero enfrentar o tema (ou como diriam os jornalistas e comunicadores que tratam a língua portuguesa a chicote: “enfrentar de frente o tema”). Sem querer dar o braço, o pé e a cabeça a torcer, reconhecendo um pouco de verdade no desafio, resolvo que primeiro preciso ler aquele volumezinho do Robert Musil, “Sobre a estupidez”, de 62 páginas, porque irá me permitir entender melhor o Brasil neste excepcional momento histórico. Planejo ler Ariès depois da vacina…
Resolvo que é melhor seguir Voltaire e Luciene e “cuidar de meu jardim”. Programo o passo a passo de minha ação: podo, planto, mudo, adubo, contrabandeio a água racionada, pinto os vasos e reforço a composteira. Daí resolvo que é melhor deixar por conta do jardineiro. Afinal, de meus avós e bisavós lavradores herdei um nome honrado e o desejo de me mudar para a cidade grande.
Resolvo que vou dar um rolê com meu carrinho que precisa esquentar o motor, movimentar a gasolina do tanque, por a bateria pra funcionar, aquecer os pneus e tomar um banho de sol. Irei só até o limite de meu bairro, entro no retorno e volto pra casa. E se o corona estiver me esperando na esquina? E o tal de por a máscara, tirar os sapatos ao voltar, lavar pela duocentésima vez diária as mãos com aquele sabão mal cheiroso? Daí resolvo que não terei tempo, porque ainda não li os dois jornais diários e aqueles sites especiais de cultura e me sentirei desatualizada. Provavelmente o remorso não me deixará dormir.
Resolvo que depois de seis meses reclusa, qualquer resolução perdeu o sentido. A vontade e o pensamento tornaram-se prisioneiros da sobrevivência. Sem resiliência, sinto-me um legume (sem querer ofender os vegetarianos). Sem desejo de aventuras, sinto-me um cão treinado (sem ofensa aos amigos dos pétis). Sem horizontes e sem poder gritar meu horror e minha discordância, sinto que a cidadania morre um pouco a cada dia.
Nem sei se a escrita ainda pode me socorrer.

  • Autora: acadêmica Marta Morais da Costa
  • Foto: cedida pela autora
  • Imagem: Fernando Zhiminaicela por Pixabay