O incêndio do suicídio de Getúlio ou as chispas das antenas dos bondes elétricos chamam tanto a atenção em São Paulo quatrocentrão quanto as torcidas do Corinthians e do Palmeiras assistirem, juntas, ao derby que daria ao alvinegro o título de Campeonato Paulista do Quarto Centenário. O jogo, no Pacaembu, já em fevereiro de 1955, terminou empatado (1X1) e isto bastava ao Corinthians.

Mas o empate não basta nem a William Faulkner, considerado um dos maiores romancistas do Século XX, e nem a “Um Bourbon para Faulkner” (Kan Editora e Atrito Arte), romance recém-lançado, do escritor londrinense Marco Antonio Fabiani. Neles, há vitórias e derrotas, com tudo o que elas acarretam. Ambos, Faulkner e Fabiani, escrevem sobre sentimentos humanos, que resultam do que são e fazem as pessoas. E o melhor: com muita propriedade.

No romance, Fabiani cria e reconstrói a alma atormentada, ébria e criativa de seu personagem principal, Faulkner, que derrama filosofia e Bourbon da melhor qualidade em diálogos de alto teor filosófico e de existência (o dia a dia) com João Clark, um barman em um hotel da São Paulo de 400 anos, com bolsões e comportamentos provincianos, que mantém, como nos dias atuais, estrepitosa e lunática, o mesmo grude de ser e de significar esperança para milhões de pessoas.

O encontro entre os personagens centrais é casual, quando da vinda de Faulkner ao Brasil em 1954, a convite e a serviço do governo norte-americano, que lhe reservou uma turnê pelo mundo depois de ele haver ganho, em 1949, o Prêmio Nobel de Literatura.

Fabiani cria sua ficção da melhor maneira, inclusive aproveitando-se de fatos, como o encontro e galanteios do escritor americano a Lygia Fagundes Telles, de pesquisas em livros, jornais e revistas e da intuição dos que produzem literatura acima do comum.

A narrativa é de uma limpidez especial e a descrição da cidade daqueles tempos é simplesmente impressionante, misturando lições de Marcel Proust e Liev Tolstói.

Dos cheiros ao agito feirante do Brás, da indigência de suas pensões e malocas, do glamour e pobreza do centro da cidade, de tudo o que ela representava aos milhões que nela habitavam ou a procuravam, em magnetismo particular às demandas humanas, a narrativa é de gente tarimbada nesta arte de romancear a partir da realidade.

A descrição é fotográfica, jornalística, não só da cidade, mas, inclusive, de personagens periféricos que giram em torno dos principais e se encaixam à cena paulistana.

Faulkner, nascido no Mississipi (EUA) em uma família poderosa do sul do país arruinada pela Guerra da Secessão, cujo bisavô, de quem ele herdou o nome, conduz a cena e o livro.

Ele pinta a sua aldeia, conversando com João Clark, brasileiro descendente de um grupo migratório dos EUA, os estaduninenses, fugido do mesmo sul americano e fixado no Brasil, em Santa Barbara d’Oeste (SP).

Faulkner a descreve com cores dolorosas, cruas, com extrema dimensão da tragédia humana, sem afrescos ou adereços gratuitos, que revelam a decadência pela qual passaram os confederados. É cruel, mas de uma enorme solidariedade aos doloridos de toda parte.

Clark a absorve, carregando-a durante a permanência do escritor em São Paulo e não só depois de sua partida do Brasil, em agosto de 1954, mas por toda a sua vida.

Ex-jornalista, o escritor não economizava azedume aos entrevistadores que lhe repetiam as mesmas perguntas. Uma de suas poucas lembranças ternas no Brasil, além da amizade com Clark, foi de Lygia, cuja analogia Fabiani disfarça. Mas nem tanto: a beleza e o ofício de Lygia nos leva a uma só identidade.

Extremamente ligado à família, Faulkner lembra-se várias vezes durante os diálogos com ternura, carinho e ciúmes, de sua filha Jill. E igualmente Clark, que carrega culpa pela morte de seu irmão mais velho, em sentimento de expiação que se dá ao longo das páginas.

Assim, o livro é uma costura de recordações, paixões, filosofia e lições de vida.

Deste romance, foi extraída uma versão dramatúrgica que, onde foi apresentada, recebeu aplausos e serviu como aperitivo da publicação.

Deste livro, extraio uma frase telúrica que não se sabe se é genuinamente de Faulkner e foi transcrita ou de Marco Antonio Fabiani, por sinal criador de todo diálogo entre o escritor e o barman: “…As terras têm alma. A carne e o sangue, os corpos enterrados e todas as vidas impregnam o chão. E todo vivente que passa pelas margens do rio, pelas planícies, pelas cidades barulhentas, onde não se vê mais vestígios da vida rural, sente na pele o mundo que existiu ali…”

  • Autor: Acadêmico Nilson Monteiro
  • Foto: Arquivo