A lei Maria da Penha (2006) cumpriu o anseio da Constituição de 1988 (art. 226, § 8º) de coibir a violência doméstica contra a mulher e é fruto de duas convenções internacionais, uma da ONU e a outra da OEA. Hoje o dia 25 de novembro é Dia Internacional de Eliminação da Violência Contra as Mulheres, instituído pela ONU, em homenagem às irmãs Pátria (Maria Tereza e Minerva Mirabal), vítimas de tortura e assassinato, a mando de Rafael Trujillo, ditador da República Dominicana.

O Brasil ocupa atualmente o quinto lugar no ranking mundial da violência contra a mulher e contabiliza mais de meio milhão vítimas de estupro, por ano, embora apenas 10% deles chegam à barra da justiça.

Daí se diz que a violência contra a mulher está enraizada à cultura de nossa própria sociedade. Porém, diante da necessidade de oferecer tratamento especial à vítima feminina e a natureza do delito, foram criadas delegacias especiais ao trato da espécie, sob direção de policiais femininos e pessoal próprio, para a prevenção e defesa da violência doméstica e que pudesse assegurar à mulher vitimada tratamento igualitário e condigno do gênero e que fosse, sobretudo, infenso à discriminação social e de gênero.

Pena porém, que o número dessas Delegacias especiais hoje instaladas representem menos de 10% daquelas prometidas.

Numa outra visão, porém, um grupo de profissionais paulistas e do próprio Congresso Nacional vem oferecendo um plano de propostas e medidas que visam sensibilizar juízes, promotores e operadores do direito, para uma visão do feminicídio que incorpore à sua visão binária, habitualmente reduzida à simples participação do estado e do infrator, a presença fragilizada da própria vítima e lhe dispense tratamento de maior empatia e sensibilidade, que substitua a visão tradicionalmente machista, que tenta desqualificá-la como vítima e lhe dispensa trato de simples objeto processual.

Daí a proposta de um grupo de profissionais da área jurídica, de saúde, religiosa e entidades civis, que tramita no Congresso Nacional visando a criação do Estatuto da Vítima, que evite sua simples desqualificação e a conversão do crime em episódio natural.

À propósito, vale até recordar a experiência que vivemos anos passados numa audiência judiciária da comarca de Apucarana, onde éramos então promotor de justiça substituto.

Certo dia, entre outros afazeres do ofício chegou ao fórum a notícia de que um rapaz, membro de família de destaque da sociedade local, abusara sexualmente de uma empregadinha da casa, uma caboclinha aparlamada, com não mais juízo e idade que 13 e 14 anos. O rapaz desfrutava das prebendas de genro, numa das famílias mais ricas da cidade, em que sua mulher cansada de seus enganos e estroinices, resolvera usar do episódio para se desfazer do marido inconveniente.

E, então, se armou um escândalo, levado ao fórum com grande bulha e aparato judicial. Foi assim que me vi participando de uma audiência em segredo de justiça, que foi convocada pelo juiz da comarca, interessado em colher notícia da violação pela boca da própria menor. E, para cumprir essa determinação, à hora aprazada a moçoila foi trazida à sala de audiência e acomodada à frente do magistrado, cadeira que ela ocupou meio sem jeito, como quem se agacha de medo. Parecia um animalzinho acossado.

A princípio o juiz precisou aquietá-la, assumindo o papel de bom pai, no tom da voz e nas palavras que usou para ganhar sua confiança e vencer seu embaraço.

E, em seguida vieram as perguntas. Primeiro as de praxe, depois as outras que me pareceram mais de curiosidade do que de conveniência. A todas a garota foi respondendo com resmungos ou meias-palavras de simples assentimento ou negativa. Mas à medida que seguia o interrogatório a curiosidade do juiz parecia lhe acrescentar mais prazer pessoal que o interesse da justiça. E essa indiscreta devassa foi desvelando aos pouco as intimidades da bugrinha. O juiz queria saber de tudo, e, com indisfarçável malícia, buscava detalhes e sensações que, em geral, as pessoas não se dispõem a revelar. Pediu formas, volumes e sensações. Quis saber do gosto da raparigota e do prazer que alcançara. Enfim, procurou refazer todo o cenário, dando vida e movimento aos personagens.

Certamente isso me produziu uma forte sensação de mau gosto. Por que revelar esses segredos, senão para alimentar sua própria sensualidade? Mas, o pior veio depois…

Assim é que, desde o começo e o curso do depoimento o escrivão indagou do juiz se devia registrar as perguntas e declarações da garota. O magistrado respondia que não precisava porque, no fim, faria o resumo de todo o sucedido. Seria mais prático… Mas, à medida que a audiência avançava e o depoimento se enriquecia de maiores detalhes lascivos eu é que ficava preocupado com o resultado de todo esse espólio sexual. Porém, pelas tantas, o juiz fez então um gesto de aparente cansaço, espreguiçou-se na cadeira, consultou o relógio e se voltou para mim: – Doutor, infelizmente acabei me atrasando e estou em cima da hora para apanhar meu filho na escola. Será que o senhor poderia me fazer um grande favor e reduzir por escrito ao escrivão tudo o que se passou na audiência? Posso contar com mais esta gentileza?

Disse isso e, com a minha incorrigível complacência, deixou a sala rapidamente.

Então fiquei eu no maior embaraço, segurando o rojão e sem saber o que fazer com ele. Agora, porém, passados tantos anos, lembro apenas de que podei o que pude e com especial alívio.

Tudo o que vi foi só uma demonstração de licenciosidade reprimida, ou, o quanto ainda se pode dizer a mais dos mistérios da natureza humana?

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: cedida pelo autor