Se estivesse vivo, Dom Paulo Evaristo Arns teria completado 100 anos de vida no dia 14 de setembro de 2021. Durante toda a sua trajetória, realizou uma caminhada a favor do ser humano, da cidadania dos mais vulneráveis e travou uma incansável luta em defesa da democracia.

Essa história de luta e fé teve início em Forquilhinha, no interior de Santa Catarina, em 1921. Foi lá que Dom Paulo nasceu, assim como seus doze irmãos: João Crisóstomo, Maria Gabriela, Maria Helena, Maria Hilda, Otília, Felipe, Max José, Bertoldo, Zilda, Zélia, e Oswaldo. Os filhos de Gabriel e Helena Arns foram criados em um lar que valorizava a educação e a fé.

A família sempre se dedicou à vida religiosa. O irmão João Crisóstomo se dedicou ao sacerdócio tornando-se frei. E as irmãs Maria Gabriela, Maria Helena e Maria Hilda também seguiram a vida sacerdotal tornando-se freiras.

A formação religiosa de Dom Paulo começou cedo. Aos 12 anos, foi estudar na Ordem Seráfica, no Seminário São Luiz de Tolosa, na cidade de Rio Negro, interior do Paraná. Em 1940, mudou-se para Rodeio (SC), onde ingressou como noviciado da Ordem dos Frades Menores (Franciscanos). Formou-se em Filosofia, em Curitiba, e em Teologia, em Petrópolis (RJ), onde foi ordenado padre, aos 24 anos. Começava então sua caminhada sacerdotal, pela Ordem dos Frades Menores, na qual atuou durante vinte anos.

No ano de 1947, mudou-se para a França para estudar na Universidade de Sorbonne, da qual recebeu o título de doutor em Letras Clássicas. Em sua estadia na Europa, realizou estágios na Alemanha, Inglaterra, Holanda e Bélgica. Seguiu para os Estados Unidos e Canadá para dar continuidade aos estudos. Retornou ao Brasil em 1952, onde trabalhou como professor no Seminário Menor, no interior de São Paulo, nas cidades de Bauru e Agudos. No dia 22 de outubro de 1970, recebeu o título de Arcebispo da Arquidiocese de São Paulo. Em 1973, tornou-se Cardeal.

Seu trabalho à frente da instituição religiosa sempre foi movido pela vontade de cuidar daqueles que mais necessitavam, prezando pela defesa dos direitos humanos. Quando tinha 77 anos, recebeu o título de Arcebispo Emérito de São Paulo.

Cardeal da Esperança

Dom Paulo teve sua vida e seu trabalho baseados no lema que adotou para a vida religiosa: “EX SPE IN SPEM”, em latim, que significa “De Esperança em Esperança”. Esse lema foi materializado em suas ações, que o tornaram conhecido por todos como o “Cardeal da Esperança”.

E exemplos dessas ações não faltam em sua história. Acreditando no poder da comunidade, foi incentivador, apoiador e mentor de diversos movimentos pastorais, como a Pastoral da Criança, cuja criação contou com a liderança de sua irmã, Zilda Arns. Dom Paulo também teve papel importante na criação de outras pastorais como a Pastoral da Pessoa Idosa, Pastoral do Povo de Rua, Pastoral Operária e Pastoral de DST/Aids.

A opção pelos mais vulneráveis também se fez presente em outras passagens emblemáticas da vida de Dom Paulo, que faleceu em 2016,  aos 95 anos de idade, em São Paulo, em decorrência de problemas pulmonares.

Sua vida nos inspirou e continua nos inspirando, até hoje, a seguir lutando por um país em que os direitos humanos sejam preservados.

Operação Periferia

Durante o período em que esteve à frente da Arquidiocese de São Paulo, Dom Paulo desenvolveu inúmeros projetos com a finalidade de evangelizar e chegar a todos os paulistanos.

O religioso acreditava no poder do povo organizado e trabalhou arduamente para criar mais de 2 mil Comunidades Eclesiais de Base, aproximando a Igreja do povo mais carente. Uma ação que ecoa nas periferias até os dias de hoje.

Talvez, uma das ações realizadas por Dom Paulo que mais tenha demonstrado o seu desapego a bens materiais e sua preocupação com o bem-estar social foi quando, em 1973, vendeu o Palácio Pio XII, a residência oficial do arcebispo na época.

Com o dinheiro arrecadado com a venda, foi possível comprar mais de 500 terrenos em São Paulo, onde iniciou o trabalho de instalação de milhares de comunidades eclesiais de base. A chamada Operação Periferia também recebeu a ajuda financeira de instituições alemãs, como a Misereor e Adveniat.

A intenção do projeto era criar um movimento de religiosos e integrar a comunidade para que a Igreja missionária fosse melhor difundida nas periferias, oferecendo cursos, encontros e reuniões. A Operação Periferia trouxe a essas comunidades formação litúrgica, bíblica e catequética, criando na cidade um clima de integração, de proximidade entre a Igreja e as pessoas mais necessitadas.

A ideia de Dom Paulo em criar essas comunidades foi inspirada na Campanha da Fraternidade do ano anterior, que tinha como lema “Descubra a felicidade de servir”. Naquele ano, Dom Paulo além de iniciar seus trabalhos para pôr em prática a Operação Periferia, também destinou 35% da renda arrecadada durante a Campanha da Fraternidade às atividades missionárias e pastorais realizadas nas periferias de São Paulo.

O trabalho realizado por meio da Operação aconteceu entre os anos de 1972 a 1978 e atingiu cerca de 4 milhões de pessoas em todo o território da Arquidiocese, abrangendo a capital paulista e ainda alguns municípios da Região Metropolitana, sendo considerada, naquela época, a maior arquidiocese do mundo. Além disso, a Igreja se expandiu e todo o trabalho resultou, mais tarde, na origem das dioceses de São Miguel Paulista, Santo Amaro, Campo Limpo e Osasco, além da criação de 43 paróquias e, aproximadamente, 1,2 mil comunidades.

O trabalho não terminou em 1978, ao final da Operação. Pelo contrário. O que era para ser algo temporário, tornou-se a Pastoral da Periferia, que até hoje rende frutos e está presente em todo o Brasil.

Obras Literárias

Dom Paulo sempre foi um homem das letras. Sua formação acadêmica comprava isso. Ao longo de sua trajetória de vida, Dom Paulo registrou grande parte de sua vivência religiosa. O primeiro livro escrito por ele foi “A técnica do livro segundo São Jerônimo”, tema de sua tese de doutorado. O trabalho acadêmico se tornou livro e a primeira versão foi lançada em francês, sendo traduzida em seguida para o português, italiano e outras línguas.

O livro “Dom Paulo Evaristo Arns – Da Esperança à Utopia” é uma autobiografia onde relata momentos decisivos da vida religiosa, especialmente do período em que esteve à frente da Arquidiocese de São Paulo.

Foi autor de mais de 50 livros, mas sua obra mais difundida e conhecida no Brasil e no mundo foi fruto do trabalho que desenvolveu ao lado do pastor presbiteriano Jaime Wright e do Rabino Henry Sobel, durante os anos mais difíceis que o Brasil passou como Nação.

O livro “Brasil: Nunca Mais”  resultou do projeto que documentou a tortura praticada nos porões da ditadura. Tal iniciativa deu voz a muitas pessoas que foram mortas ou torturadas durante o regime militar em nosso país.

Ditadura Militar

E não há como falar de Dom Paulo Evaristo Arns sem destacar sua atuação em defesa da democracia. Certamente, este é um de seus principais legados. Em um período em que o Brasil vivenciou as consequências sombrias da ditadura, Dom Paulo não só resistiu, mas também agiu.

Destaco as palavras de Dom Paulo no prefácio do livro “Brasil: Nunca Mais”: As angústias e esperanças do Povo devem ser compartilhadas pela Igreja. Confiamos que esse livro, composto por especialistas, nos confirme em nossa crença no futuro. Afinal, o próprio Cristo, que ‘passou pela Terra fazendo o bem’, foi perseguido, torturado e morto. Legou-nos a missão de trabalhar pelo Reino de Deus, que consiste na justiça, verdade, liberdade e amor”.

Em 1972, Dom Paulo criou a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo com o objetivo de reunir e apurar as diversas violações dos direitos humanos que aconteciam na cidade naquela época. Era na sua própria casa que eram colhidas informações e depoimentos das vítimas da ditadura. Ao longo do regime, visitou inúmeros presídios a fim de apurar as denúncias recebidas e cobrava medidas do governo para casos de prisões arbitrárias, torturas e o sumiço de pessoas.

Na sexta-feira do dia 31 de outubro de 1975, Dom Paulo abriu a Catedral da Sé para a realização de um culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog, que havia sido torturado e morto pela ditadura. O caso é um dos mais lembrados e estudados até hoje em todo o país como forma de contextualizar o cenário sombrio em que o país estava inserido naquele momento.

Legado

A lembrança de Dom Paulo, neste momento crucial da vida de nossa Nação e do seu povo, deve servir de inspiração para a descoberta de caminhos de superação das injustiças, das divisões, das exclusões, dos preconceitos e das discriminações.

Sem o acolhimento do grito dos excluídos no sentido da superação do enorme fosso das desigualdades, jamais caminharemos para a criação de uma nação justa e acolhedora para todos os seus filhos.

O direito a uma vida digna é um direito inalienável e um caminho de direito e de solidariedade só pode se concretizar num sadio clima de democracia. Dom Paulo foi uma voz que se ergueu pela democracia, pelo direito e pela justiça, sem medo e com destemor contra todos os abusos violadores dos direitos humanos.

Lembrar seu legado deve ser nosso compromisso. Seguir em frente, com coragem e esperança, como ele dizia, deve ser nossa missão!

  • Autor: acadêmico Flávio Arns
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: arquivo pessoal