O historiador e cientista político Boris Fausto publicou recentemente “O Livro da Galeria Cristal: e os dois crimes da mala”, reproduzindo três dos delitos que abalaram a cidade de São Paulo e que se incluem no panorama mais amplo da criminalidade paulista das décadas de 1880 a 1924, que o autor vem se empenhando em reconstituir sob a forma de micro-histórias ou divers faits, do jargão jornalístico. Embora se trate de uma história menor, própria do cotidiano, o autor valoriza o gênero, no suposto de que, mesmo pontual e singular, ela está inserida numa quadra maior de paixão, violência e ambição, cuja projeção favorece sua compreensão no cenário humano e na ampla moldura social que o envolve.

A prática dessa literatura histórico-criminal vem sendo repetida há já algum tempo em todo o país.  Ainda recentemente conhecemos os “Crimes que abalaram o Rio Grande do Sul” e tantos outros repertórios iguais, obras de advogados e jornalistas.  Nós mesmos temos resenhas semelhantes, em que procuramos reconstituir “O Crime da Rua Barão do Rio Branco”, que tirou a vida de Egydio Piloto, de tradicional família curitibana; “O Crime da Rua Montevideo”; “O Crime do Padre Pinto”, da Lapa do tempo da Revolução Federalista e o “O Crime de Corina Portugal”, vítima feita “santa” do cemitério São José de Ponta Grossa.

Essa prática representou, entretanto, o lado canho do jornalismo criminal, tão abundante na literatura europeia e norte-americana.

Por volta de 2005, porém, o país foi surpreendido pela divulgação de um esquema de corrupção ativa dos Correios e Telégrafos, envolvendo agentes públicos e particulares, conhecido por Mensalão, e que se tornou, até então, o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e desvio de dinheiro público do país, envolvendo cerca de 40 réus, entre os quais ministros, deputados, diretores de empresas do governo e empresários, de que, afinal, resultaram condenados 21 deles à prisão e multa.

Ora, poucos anos depois, em agosto de 2014, a nação brasileira voltou a ser surpreendida por um novo escândalo, visto como ainda maior do que o anterior, correspondente ao conjunto de investigações da Polícia Federal sobre organização e gestões fraudulentas, corrupção ativa e passiva, pagamentos de propinas, lavagem de dinheiro, envolvendo presidentes da República, presidentes do Congresso Nacional, ministros, parlamentares, governadores e grandes empresários.

Até 2015 o prejuízo da Petrobrás com a Lava Jato alcançou R$ 42.8 bilhões e a retração da economia do país chegou a R$ 140 bilhões. Foram 1.765 procedimentos investigatórios, 101 mandados de prisão preventiva e 111 provisórias, revelando o pagamento R$ 6,4 bilhões em propinas e levando ao bloqueio de R$ 3.2 bilhões em bens.

Diante disso, vale perguntar, se já não nascemos vítimas de um fado irremediável que nos leva sempre à cobiça do alheio e ao assédio ao patrimônio público. E, é verdade que somos vítimas de um código genético de inevitável vocação criminosa?

Certamente que não, dizem os que mais sabem e que veem na nossa origem uma população de formação ordeira e normalmente respeitosa da lei e do direito alheio. Nesse sentido, o período sempre invocado é o da monarquia, mencionado como um tempo de paz social e predominante ordem pública, embora não haja, até aqui, quem se dispusesse a promover um retrospecto geral, para o levantamento do cenário do crime durante o Império.

Boris, porém, não aceita esses bons ares dos costumes do Império, sob fundamento de que nosso país resistiu à outrance, à abolição da escravatura, quando, a bem de ver, o regime escravista é uma prática social pré-histórica, que ainda hoje subsiste, compondo um segmento social, com disciplina jurídica própria e ampla tolerância social e oficial. E lembremos que a liderança antiescravista esteve às mãos de brancos…

Certamente não há nenhum compêndio que resenhe as práticas criminosas da vida da corte ou de seus dias comuns, que sequer se aproximam dos valores de hoje ou revelem tamanha ganância e afronto ao tesouro público, de que eles são os próprios guardadores.

Ainda não foi feita uma memória maior sobre eles. Só uns poucos registros colhidos ao avulso da trilogia de Laurentino Gomes, abrangendo todo o Império, onde, em geral todos se servem. É abundante, no entanto, a prática miúda responsável por certa visão popular de um hábito arraigado aos nossos costumes, que serviram de inspiração ao livro “A Arte de Furtar”, do padre jesuíta Antonio Vieira e às imagens das gordas ratazanas das ilustrações do cartunista Ângelo Agostini, do Segundo Reinado. Há passagens da venda aos viajantes de pó misturado no ouro e de Tomé de Souza inaugurando o Governo-Geral e a corrupção nacional em carta aberta do rei de Portugal.

Para nosso acadêmico Laurentino, Joaquim José de Azevedo, Visconde do Rio Seco, e Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço, foram as figuras mais destacadas da corrupção no Brasil da primeira metade do século XX.

Na verdade, a concessão de títulos de nobreza à burguesia do Império fez parte da política de sustentação do governo imperial e foi inaugurada, certamente, por Dom João VI que, ao transferir o governo real para o Brasil, distribuiu mais títulos de nobreza do que nos 700 anos da história da monarquia portuguesa.

Enfim, diante do que hoje se sabe, e nos surpreende, nas últimas décadas da vida política nacional, e do pouco que guardamos deste lado obscuro do nosso país, é hora de se proceder a um balanço nacional e levantar o pano de fundo da nossa contracapa, para que se revelem os traços comuns da identidade nacional.

Talvez seja esse enfim um dos papéis mais importantes da ciência da história: não revelar apenas as divergências, mas as identidades.

  • Autor: Acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: Arquivo
  • Imagem: Annca por Pixabay