oel Nascimento foi primeiro ocupante da cadeira n.º 27, da Academia Paranaense de Letras, empossado em maio de 1979. Era promotor de carreira, mas foi poeta, ensaísta e romancista que deixou expressivo legado literário.

Seus primeiros entoos poéticos vieram com as “Nuvens”, vertente que voltou a fluir no seu “Coreto de Papel” e, na “Cosmonave”, com celebrações líricas de sua terra e projeções siderais, refazendo lembranças e imagens de seu tempo.

Mas o  que ia prevalecer nele era seu lado mais forte, o de sua comoção diante do quadro da desigualdade humana convertida em exclusão; supressão da liberdade e o confinamento do homem, subtraindo-lhe o bem da vida.

Foi assim quando pôs os olhos no Contestado, nossa  maior guerra civil (mais que Canudos), que deixou um custo de mais de 5 mil vidas e o maior desastre ecológico do país. Dela fez um romance, a “Casa Verde”, uma recriação ficcional da guerra xucra, mas, sobretudo, um referencial de leitura do drama caboclo, que, numa expressão solta e à voz de muitos: um bom padre e um verdadeiro trabalho evangélico teria evitado.

Seu maior sucesso foi, porem, “Arcabuzes”, com o qual ganhou o Prêmio Paraná, de prestígio nacional, Um romance dos antecedentes da República, no cenário do Brasil Meridional. Um livro de opinião, em que o imaginário se mescla com o histórico. Há lances dramáticos lavados em sangue, com mais de 10 mil vidas sacrificadas, 1.000 delas vítimas da faca prateada de Adão Latorre e outros ferozes sangradores. Mas os personagens em geral ocupam um segundo espaço. São figurantes que se movem num plano secundário.

Para Noel a matriz da história está no povo. O homem isolado não conta, senão dentro de uma conotação de mérito. Sua visão humanista posterga também a versão marxista das relações de produção e trabalho e minimiza o papel da miséria como fomento das revoluções. Fez de Floriano Peixoto o “general da raça” e do general Carneiro um obstinado, dileto de Floriano, que cometeu crime de Direito Internacional ao reprimir à bala até mulheres e crianças que tentavam desertar do cerco da Lapa. O coronel Lacerda, da guarda lapiana, quando a cidade caiu, fugiu com a família dos degoladores maragatos mas carregou consigo seus pertences e os trezentos contos do soldo dos patriotas.

Digamos que Noel tinha sedução pela injustiça. Ela o seduzia e provocava, certamente. E isso era próprio de sua sensibilidade. Ou só aflorava quando exposta a um desafio?

Durante o conflito de Pato Branco, no Sudoeste do Estado, diante da intervenção das empresas colonizadoras, que, se servindo de concessões do governo mantinham jagunços para expulsar as famílias dos posseiros das terras que ocupavam por contrato. Noel então se fez candidato a deputado e adotou Pato Branco como sua bandeira de luta.

Pendurou o corpo morto de um pato branco na capota de um velho “jeep” e rodava com a ave pela cidade e vizinhanças fazendo campanha e alarde da injustiça que representava. Ocorre que o prefeito  era  dono de uma das colonizadoras e a sua atitude parecia afronta ao administrador, tido como homem de gênio forte e prestígio pessoal junto ao governo estadual.

Não custou, portanto, que aparecesse nas imediações da praça, postado à frente do bar um homem de ar severo, com a mão enfiada dentro de um blusão de couro, como se aguardasse alguém. Na ocasião eu e Noel bebíamos um cafezinho no balcão do bar. Foi então que Noel se chegou a mim, nervoso, para dizer em segredo que aquele era um dos jagunços do prefeito, certamente vindo para matá-lo. Tentei protegê-lo e ao deixá-lo nos fundos do bar,  fui ao personagem. Eu já o conhecia de antes e ele costumava me respeitar. Eu já sabia de sua participação num dos massacres de Pato Branco e indaguei diretamente se então trazia alguma arma consigo ou tinha algum mau propósito.

– Que é isso doutor, fez um esgar de riso e puxou um exemplar da Bíblia do peito da blusa e me mostrou: – Hoje sou outro, doutor, e esta é a minha única arma: a palavra de Cristo! O jagunço tinha se convertido!…

Noutro ponto, também, sua intransigência era radical: contra toda pena física, de caráter retributivo  ou intimidativo, a titulo do mal pelo mal. Embora promotor por tantos anos de serviços à causa da persecução criminal, Noel era contrário a toda forma de violência e restrição à liberdade. Para ele o homem se redime pela sua própria consciência, pela renúncia e o exercício do amor.

A pessoa humana é a criação mais perfeita e elevada da obra da natureza ou de Deus. A causa social do crime está simplesmente, na falta de proteção do homem, como, igualmente, sua causa individual reside na falta do amor.

Noel não criou um sistema próprio. Manifestou um amplo e generoso sentimento humanístico que era só seu e com o qual supunha vencer a mentalidade burocrática e repressiva que vigora no mundo, para a construção de um outra sociedade mais justa e mais humana.

Certamente sua “teoria” não aceita qualquer applique, mas sou levado a tentar completá-la, assim mesmo, invocando o sistema de Dorado Montero, para quem o juiz não seria juiz mas um “tutor”, igual a um médico-penal. Então não haveria promotor nem advogado, seriam substituídos por funcionários especializados, com funções judiciais, administrativas e policiais. Seria assim, para nossos 600 mil presos? 2.240.000 dos Estados Unidos; 1.600.000 da China; 681.000 da Rússia?. Quando se achará, porém, a solução ou o alívio humano para tamanho drama social, que a cada dia mais se agrava? Será que arte de criar sistemas prisionais ou simples remissões de pena não poderia a ciência, descobrir uma forma de, ao invés de tirar os espinhos da casca da fruta, tornar sua polpa palatável? Será que Noel sabia, ou ficou apenas na emoção?

  • Autor: Acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: Arquivo
  • Imagem: Rui Cavallin Pinto