Saio pra Curitiba molhada, cinza como convém, e líquida para eu sentir sua carícia gelada. É garoa fraca, mas molha paralelepípedos, carros e os olhos de quem desteme seus temperos.

O casaco atrai e absorve sentimentos nas ruas. Milhares de ossos, recém enterrados, espetam a paz das esquinas. A pandemia geme em manchetes, em pedaços de carnes e nas mãos de uma enfermeira polaca. Morremos a cada segundo, comendo pastel engordurado ou não. Na Vila Pinto, os botecos estão cheios. No Bela Vista, as cercas estão silentes. No Perpétuo Socorro, há crucifixos em musgos.

Ando-me.

Mesmo sem precisão, caminhar é preciso, aqui e ali. Ir ao Bom Retiro dessa urbe de colo molhado. Há terrenos largos, compridos, alguns abandonados, a lembrar cidades pequenas, esparramados em meio ao concreto.

Ou fraldas de civilização, molhadas como essa, em cujos céus espetam edifícios de todas as alturas e tamanhos. Tento adivinhar o que acontece em seus apartamentos e escritórios, mas os vultos embaçam. Dentro, há lâmpadas acesas e pessoas com luz, outras em escuridão embrutecida. Casas módicas, até algumas de madeira, lembram o passado de agora há pouco, resistem. Os restos são pedaços de ficção.

Tigres com ternos enferrujados, de cabelos brancos e lisos, afiam os dentes, enquanto se auto imolam por pensar em fêmeas, e gritam hinos mitológicos, lições de fakes, teses de abutres. Só de raiva, penso com ternura em mulheres, em todas as mulheres, me perco e me recupero em fantasias. Sopro as velas da vida a navegar – roupas limpas em varais, hospitais de quartos vazios, beijos entre araucárias, velocípedes de crianças, barracas de feiras, mãos na criação… Ninguém, nem imbecis que se sangram ou prometem vingança aos felizes podem deter meus sonhos.

Atravesso parques quase ensopados. Há ruídos de uma desvairada, de cabelos desgrenhados, a gritar palavras de desordem. Os arbustos não lhes dão ouvidos.

Ando-me.

Há flores pequenas na janela pequena de casa pequena. Não sentem frio, não se cobrem e nem se enrugam, abrem-se coloridas a galanteios.

O casaco está encharcado de ardor pelas gentes, esquenta o espírito, enquanto o gorro escorre chuva em lasquinhas, nascida garoa, por sobre a máscara.

Uma sábia desafia a moldura do dia.

  • Autor: acadêmico Nilson Monteiro
  • Foto: redes sociais
  • Imagem: Daniel Castellano