O então Pe. Valdomiro Haneico veio de Mallet para Apucarana em 1955, como reitor da missão ucraniana-católica e professor de português no Colégio Estadual Nilo Cairo.

Nascido em Nova Galícia, Santa Catarina, em 1910, filho de imigrantes ucranianos, mas, como a família deixou a cidade, iniciou sua educação em Dorizon, de onde prosseguiu para sua formação religiosa no Colégio de São Josafat do Gianicolo, em Roma, e se ordenou sacerdote, retornando ao Brasil para cumprir seu trabalho pastoral nas cidades de Mallet, Vera Guarani, Castro, Ponta Grossa e União da Vitória.

Embora eleito deputado estadual em 1958, com residência fixa em Curitiba, se manteve, no entanto, atendendo aos paroquianos de Apucarana, passando em 1962 à função de inspetor regional de ensino da região e participando da construção da igreja de Nossa Senhora de Fátima, na colônia Nova Ucraniana. Prosseguiu como professor e a atuar como líder religioso na comunidade ucraniano-católica da região, passou a marcar presença na imprensa regional e até nacional, além de produzir livros, em três edições, quais foram: o “Apostolado da união: a vida de S. Josafat” (1973); “Em defesa de uma Cultura” (1974) e a “Centelha de Luz”1985), todos voltados para a história da Ucrânia, sua imigração para o Brasil e o sacerdócio da igreja católica ucraniana em nosso país.

Sua “História de uma cultura” é hoje, certamente, sua obra mais importante, diante do atual quadro político internacional criado pela invasão da Ucrânia pela Rússia que, ao que se vê na imprensa comum, o episódio é tratado como uma só e simples operação militar, extremamente violenta e imotivada sim, mas sem causa aparente e contra a qual tem se contraposto toda a humanidade e, sobretudo, seus órgãos e entidades superiores de segurança e promoção da justiça internacional.

A Rússia terá suas próprias razões, certamente alega a pretexto de raisons d’Etat.

Então, a reação posta por Haneiko no livro, na verdade ele já me havia repassado em fevereiro de 1978, e eu as expus, em artigo da imprensa local, mas sem lhe imprimir, no entanto, vigor igual ao do autor e com sua extensão, diante das minhas próprias circunstancias e as da época, além dos limites impostos pelo meio usado para divulgação.

Dei ao livro, entretanto, o sentido mais de defesa contra a “russificacão” da Ucrânia pelo irmão mais velho, do que o de um libelo de acusação, como vejo o quadro de agora, depois do acesso ao livro.   Este, na verdade, tem pouco mais de cem páginas, mas contém oito outros textos de autoria de literatos e críticos ucranianos, que mantém o mesmo alinhamento de resistência e de indignação, igual à de Haneiko, contra todo o processo de sua desnacionalização ou do que até se mostra como um verdadeiro genocídio do maior grupo étnico que existe hoje no Brasil, segundo país da Europa em extensão territorial, com população de mais de 40 milhões de habitantes  (censo de 1939), 3,5 milhões dos quais vivendo na própria Rússia, mantendo sua  língua própria e uma rica literatura, a contar da Idade Média. Sem deixar de mencionar que a etnia tem hoje, em nosso país, mais de 400 mil descendentes.

De princípio, relembramos a lição de que a Ucrânia e Rússia têm origens comuns, no Grão Ducado de Keív ou Rush, do século IX.  Em 988, porém, ela renuncia o componente Rush, e passa a ocupar o sul da Rússia, às margens do Dnieper, sob o título de Ucrânia, nome de origem eslava que reuniu “U” (junto) a “Krau” (fronteira). E dizem que ai já está seu componente étnico mais resistente, seja o sentimento nacionalista, que há de se confirmar em toda a história do país e justificar a luta por seus ideais de autonomia e resistência a toda forma de opressão e discriminação do seu povo e seus valores culturais, sob o subterfúgio chauvinista russo de que se trata de mero “nacionalismo burguês!”

Os atentados são inúmeros e constantes à consciência nacional e religiosa do povo ucraíno, que incluem sua discriminação, a tentativa de suprimir sua autonomia e de abolir o uso do seu idioma, com a postergação dos seus maiores valores culturais.

É numeroso o rol dos seus intelectuais e cientistas vítimas da perseguição e castigo sob a alegação de “nocivo sentimento nacionalista”, com penas que se estendiam desde o internamento em hospitais psiquiátricos, prisões por longos períodos e trabalhos forçados, conforme denúncias de ampla divulgação, repassadas à Comissão de Direitos Humanos da ONU.

Durante os festejos da memória de Taras Shevchenko, o maior poeta ucraniano, a Biblioteca da Academia de Ciências e Letras da URSS, em Kiev, foi incendiada e destruídos 600 mil volumes da história e da cultura ucraína, por conta de uma caixa de fósforos nas mãos de “Poghrujalsky, um “patriota soviético”, “poeta mulherengo e complexado”, que quis se vingar dos maus tratos de um seu superior. Igual destino também tiveram as bibliotecas nacionais da Turcomênia e do Uzbequistão, além da incineração dos livros hebraicos do mosteiro de Vydubysky.

O idioma nacional da Ucrânia foi também sendo progressivamente excluído das escolas e relegado mais às zonas rurais, com a predominância do russo em todos os graus de ensino e das atividades principais e, quanto ao uso da língua nacional, passou a ser simplesmente tolerado, mas, assim mesmo, com reservas, para os que insistissem em usá-la.

Assim, isso tudo passou a compor, sucessivamente um quadro intolerante e exclusivo de opressão e submissão do sentimento nacional do povo ucraniano, impedido de dirigir seu próprio destino e excluído de cultivar e fruir dos seus próprios valores culturais.

Tudo isso chegou agora ao ponto de se converter numa guerra aberta, repetindo um quadro quase semelhante de autêntico genocídio, de quase um século atrás, com o nome de Holodoro, (ou morte pela fome) que custou o sacrifício da vida de 7 a 11 milhões de ucranianos, para fazer cumprir um dos planos quinquenais extremamente ambiciosos, impostos por Stalin, de coletivização das terra e para bater os recordes internacionais da produção de grãos e cereais.

Em todas as vezes, porém, o que tem feito prevalecer o espírito de resistência do povo ucraniano, na defesa de sua soberania e do seu patrimônio material e sua herança cultural, tanto quanto no exercício de sua liberdade de integrar o conjunto das Repúblicas Soviéticas e de poder manter fraterna convivência com as outras nações, reside, sobretudo, no poder das garantias fundamentais que a própria Constituição Soviética lhe assegura, embora se possa repetir, com propriedade, que, a bem de ver,  seu maior predicado é o do próprio espírito coletivo, que não corresponde apenas a um atributo político, mas a uma consciência comum e integral, fruto de um legado cultural e espiritual de séculos do passado, apurado por uma sentimento de identidade nacional e confiança na prevalência do seu destino.

Rússia e Ucrânia estão hoje próximas de uma mesa de negociações e vamos torcer para que esse quadro de agressão e ameaças se recomponha, não só para garantir a independência da Ucrânia, mas, sobretudo, para manter vivo o fio de esperança que ainda sustenta a prevalência da paz.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto do autor: arquivo APL
  • Imagem: cedida pelo autor