Nilson Thomé é quem conta o episódio do assalto ao trem pagador do Contestado, em “O Assalto ao Trem Pagador”, edição do autor, 2009. Talvez seja ele o maior escritor da micro-história do Contestado. Produziu uma obra intensa sobre o conflito parano-catarinense. Pena que nos deixou muito cedo, e com ele perdemos muito do que ainda podíamos saber.

O assalto foi fato inédito. O primeiro da República.

Depois dele, outros foram explorados pelo cinema americano do far West, nos quais, para dar mais empolgação ao espectador, os assaltantes perseguem a cavalo, a galope e a tiros, os trens pagadores ou as diligências que levam dinheiro ou ouro pelas áreas desertas do oeste americano.

Entre nós, tivemos em 1960, o assalto ao carro pagador da Estrada de Ferro Central do Brasil, nas proximidades da estação do Japeri, no Rio de Janeiro. Os assaltantes levaram 27 milhões de cruzeiros e mataram um homem. Foram presos um ano depois e o episódio virou filme de igual nome, produzido por Herbert Richers, em 1962.

O mais audacioso, porém, foi o assalto ao trem pagador de Glasgow, que levava depósitos bancários da Escócia para Londres. O crime aconteceu 50 anos depois do nosso. Nele Ronald Biggs foi chamado de “o ladrão do século”.  Acompanhando uma gangue de ladrões, Biggs, sem o disparo de um único tiro, fez parar a composição, manipulando a sinalização da estrada. Roubaram 120 sacos de dinheiro, contendo 2,6 milhões de libras, quantia recorde para a época.

Os ladrões foram presos, mas Biggs fugiu da prisão 15 meses depois, subornando a guarda de Wandsworth, fez plástica e viveu foragido na Austrália e no Brasil. Em 2001 voltou à prisão, espontaneamente, para cumprir a pena, mas estava velho e doente. Cumpriu 8 anos e depois foi liberado. Morreu em 2013 num asilo inglês, aos 84 anos.

Em 1887, o engenheiro Teixeira Soares era um homem consagrado. Em 1885 entregara ao tráfego a ligação Paranaguá-Curitiba e fora agraciado com uma comenda por D. Pedro II, de quem desfrutava de especial estima. Trazia o projeto da construção da um caminho de ferro de 1.403 km de extensão, ligando Itararé (SP) a Santa Maria (RS), acalentado pelo governo imperial, acompanhando, por razões estratégicas, parte do antigo caminho dos tropeiros.

A concessão foi deferida para sua construção, com direito ao “uso e gozo” da ferrovia e contando com amplos benefícios.

Embora a Monarquia caísse em seguida, a concessão foi mantida pelo governo provisório da República, com pequenos reparos, como reduzir para 15 km (era 30), cada lado do eixo da ferrovia.

A construção foi feita por trechos. Em 1908 foi completada a Linha Norte, com a inauguração da estação de Porto União.  A Linha Sul ficara reduzida ao alcance de Marcelino Ramos, porque o governo rio-grandense encampara o trecho do seu território e entregara sua execução à Chemins de fer Sud Oest Brésiliens.

Restavam então os últimos 380 km do Contestado. Área disputada por ambos os Estados. Nessa altura, o megaempresário americano Percival Farquahar, através de sua holding Brazil Railway Company adquiriu o controle da Companhia de Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Obteve prorrogação do prazo de conclusão da obra e promoveu uma profunda transformação na execução dos serviços, através da adoção de empreiteiras e tarefeiros.

Promoveu o aliciamento de milhares de turmeiros, encarregados do trabalho bruto, de remoção da terra “a muque”, e seu transporte em “carrinhos” de rodas ou “galeotas”, puxadas a força humana ou burros.

A Companhia chegou a contratar 8 mil homens, de todas as origens e índoles, arrebanhados, à larga, entre nacionais e estrangeiros, atraídos por bons salários. Vieram muitos e eram de todas as qualidades e defeitos. Até imigrantes largavam da colônia, para trabalhar na estrada. A obra despertou interesse nacional e recebeu a visita do presidente Afonso Penna (1909), que foi homenageado com a inauguração da estação Presidente Penna.

O presidente morreu dois meses depois, e dizem que foi da febre que pegou no Contestado.

A quantidade de mão de obra ocupada e seus deslocamentos constantes exigia permanente suprimento de materiais, homens e dinheiro, para o trabalho e gastos correntes. Tudo era feito por trem, pois a área era de mata densa, desconhecida e despovoada. E nela viviam os índios xoclengues. Resultava natural, portanto, que por uma razão ou outra a ideia do assalto ao trem ocorresse a gente sem raízes locais e sem maiores escrúpulos.

E foi o que aconteceu com José Antônio de Oliveira, vulgo Zeca Vaccariano, um dos tarefeiros arranchado no quilometro 152. Vaccariano devia uma elevada importância a seus turmeiros e atribuía sua recusa a pagar pela resistência da Companhia de antecipar seus direitos pelo serviço. Como a Companhia alegasse que nada lhe devia, decidiu cobrar seu direito a força. Assim, na manhã de 24 de outubro de 1909 a composição ferroviária da Companhia parou na “ponta dos trilhos” do quilômetro 150, da SPRG, trazendo 375 contos de réis, para o pagamento de 4000 trabalhadores das obras. Coisa de mais de um milhão de reais, a valores de 2009.

Tirado o dinheiro do cofre e colocado em bruacas de couro no lombo de mulas, ao fazerem o caminho por terra, foram atacados pelo bando de Vaccariano, ocasião em que mataram dois seguranças, irmãos Menério e Guilherme Bernardo, e feriram Lino Ferreira, que ainda logrou fugir pelo mato. O tesoureiro Baroni e Kaiser foram dominados e obrigados a entregar o dinheiro, sob ameaça de morte. De posse do roubo, foram liberados e obrigados a seguir em frente, até uma próxima residência de serviços.

Embora vivendo foragidos, os assaltantes nunca foram punidos. Vaccariano vivia junto à foz do Rio das Antas, no rio Uruguai, cercado de 200 homens e não escondia que havia “saqueado um trem”, do que lhe restou, porém, somente 40 contos. Foi subdelegado no extremo oeste catarinense. Descoberto foi demitido. No local do crime ainda existe hoje uma cruz de ferro, fincada em pedestal de pedra, com a inscrição: “Paz às vitimas do bandido Zeca Vaccariano!”.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: divulgação