Há algum tempo atrás escrevemos sobre as surpresas e o risco daquele que exerce a função acusatória do Ministério Público, e que viveu algum episódio que lhe custou a eminência de perder o cargo, sofrer agressão, ou mesmo morrer assassinado, como já tem acontecido. Há relatos em que a disputa na Justiça alcança o topo da emoção e desanda para a paixão e a violência.

 À propósito Roberto Lyra, atento a esse momento emocional dos intérpretes oficiais, deixou registro de acusadores que se expuseram aos maiores desafios e depois morreram “pobres, velhos e esquecidos” daquele momento em que adotaram gestos de grandeza ou padeceram frustrações de que ainda guardam lembrança. Não há quem, exposto a um desses enfrentamentos não se ressinta do clímax de paixão que por vezes assoma a seus protagonistas.

Há exemplo de um episódio desses, por conta de uma das figuras históricas do “parquet” francês, lembrada por Lyra e interpretada pelo procurador Quesnay de Beaurepaire, da Cour d’Assises do Sena, em Paris, que vale lembrar, pelo menos para homenagear a dignidade da postura pessoal ou mesmo da coragem com que reagiu e se postou defronte de um Tribunal imbele, tomado do pavor coletivo que invadia a cidade de Paris.

Foi tudo ao tempo do apogeu do anarquismo, nas últimas décadas do século XIX. Embora o czar Alexandre II, da Rússia, tivesse sido assassinado em 1881, pelas mãos dos anarquistas, foi a França e parte do continente europeu (sobretudo Paris), que se tornou o centro do terrorismo e das atuações de sua liderança.

O anarquismo constituiu uma doutrina política e filosófica que defendeu a ausência de governo e era contrária a toda forma de autoridade e dominação política; o primeiro a propagá-la foi o clérigo inglês Willian Godwin e seu teórico Proud’hon, que pregava a formação de uma organização social mutualista, com base na solidariedade e livre associação dos seus membros. Contou com o apoio de grandes pensadores e pregadores de sua doutrina política-social, como Antero de Quental, Tolstoi, Bakunin, Stirner, e, no Brasil o mineiro Avelino Fóscolo, autor do primeiro romance ambientado em Belo Horizonte. Ainda o italiano Artur Compagnoli que fundou a Colônia Anarquista de Guararema, em São Paulo e Giovanni Rossi a da Colônia Cecília, no Paraná.

O anarquismo semeou pânico na Europa, sobretudo nas décadas de 1880 e 90, na França e na Espanha e se irradiou para a América, quando do atentado de Alexander Berckman contra a vida do tycoon do aço americano Henry Clay Frick. Os atentados se sucediam constantemente, visando autoridades e figuras proeminentes da vida política, social e econômica do país. Em 1884 o jardineiro Louis Chavés assassinou a madre superiora do convento que o hospedara em Marselha e no mesmo ano Auguste Reinsdorf (que se dizia pai do anarquismo alemão), tentou contra a vida do Imperador Guilherme I e sua princesa. Na mesma ocasião Paolo Schichi lança uma bomba contra o consulado espanhol em Gênova. Jerônimo Caseiro apunhala o presidente francês Sadi Carnot e Isabel, imperatriz da Áustria é morta em Genebra a golpes de estilete pelo anarquista Luigi Luchen.

Naquele dia, porém, na Cour d’Assises seriam julgados Ravachol e seu comparsa Biscuit. François Claudius Koënigstein foi considerado o maior terrorista do século XIX, o arquétipo do anarquista “lançador de bombas”.

Em 1º de maio de 1891 os anarquistas promoveram uma manifestação em Paris, para reivindicarem direitos sociais e trabalhistas, e a polícia usou metralhadora para dispersá-los, quando muitos dos seus líderes foram presos. Durante os julgamentos o promotor M. Bulot atuou de uma forma tão decisiva perante o Tribunal que seu presidente Benoit os condenou a longas penas. Em desforra Ravachol destruiu a casa dos dois. A do promotor, na rua de Clichy, deixou 6 pessoas gravemente feridas. A do juiz Benoit, não deixou vítimas, estava desabitada. Também para vingar seu delator, o garçom Lherot, Ravachol fez explodir o restaurante Very, onde ele trabalhava.

Na ocasião do julgamento de Ravachol e seus comparsas o prédio do Tribunal foi severamente guardado por forças policiais e predominava uma impressão geral de terror e desassossego. Corria o boato de que o prédio podia ser implodido. Os jurados haviam recebido cartas de ameaças e insultos. O restaurante Very sofrera um atentado e chegou a notícia de que Emile Henry jogara uma bomba no Terminus, um dos bares mais sofisticados de Paris. Conta Roberto Lyra que Ravachol e seus asseclas entraram arrogantes no Tribunal. Pareciam zombar da Corte e faziam gestos obscenos ao júri. Simon, vulgo “biscuit”, o “enfant terrible” do bando, fazia graças e ria às gargalhadas. O temor era um sentimento geral do plenário e o próprio presidente da Corte conduzia o procedimento judicial de forma reverenciosa, como se o fizesse a contra gosto e a se desculpar de tudo.

Foi então que, por sua vez, postado na tribuna do parquet, Beaurepaire assumiu a acusação. Assumiu sem medo e, talvez fosse o único do plenário que ainda não se mostrara tocado pelo temor geral. Mas foi incisivo: Quem tem medo aqui? E Lyra então repete suas palavras: conceder qualquer atenuante a Ravachol é injuriar-vos a vós mesmo, tomados pelo mais baixo e vil dos sentimentos – o medo!

Certamente não cabe aqui reproduzir toda a vibrante accusation de Beaurepaire.  Foi peça modelar, igual a de tantos grandes combates que sustentou com Henry-Robert, o seu grande adversário do juri de Paris.

Conta Lyra, entretanto, que Ravachol acabou absolvido, diante de cuja decisão Beaurepaire teria dito, simplesmente: “O medo é uma coisa ignóbil”.

Penso, porém, que o episódio não terminou só aí. Jean Maitron é historiador contemporâneo do movimento anarquista da Europa, e certamente se deve a ele a versão mais atual e hoje predominante, de que Ravachol e seu grupo foi, na verdade, condenado à pena de trabalhos forçados pelo resto da vida.  A bem de ver, porém, teve outras acusações que resultaram na sua pena capital.

Morreu guilhotinado, em 11 de julho de 1892, em Montbrison: tinha 32 anos.

  • Autor: Acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: Arquivo