Todos rimos, sobretudo no Brasil, que, como se diz, é onde mais se ri, pois, perto do nosso riso o estrangeiro até passa por mal humorado.

Aqui não: ri-se o rico e o pobre, ri o novo e o velho, o forte e o fraco, ri-se realmente à solta e à-toa, inclusive da própria tristeza.

Somos representantes do homo cordialis que, para Cassiano Ricardo, tem sido nossa contribuição para um mundo melhor.

Kubitschek foi o presidente que ficou na história pela lembrança do seu permanente sorriso, até para passar notícia ruim. Jânio Quadros, pelo contrário, mesmo que a notícia fosse boa, ainda assim deixava um ressaibo amargo sobre tudo.

Entretanto, dizem todos que o riso é extremamente saudável, e é a forma mais simpática de comunicação e de convívio humano. É uma porta que se abre, é a escada por onde se sobe na escala social.

Conta Gilberto Freyre, que o dom de rir do brasileiro, vem do negro da senzala, como também foi ele que nos transmitiu aquele jeitinho de falar no diminutivo: que é uma forma de ascensão social, um modo de alcançar a complacência e o espaço entre as elites.

Além do riso aberto, temos, também, outras formas derivadas ou distorcidas: como a do piadista, do gozador, o trocista e tantos outros zombeteiros que habitam as rodas boêmias do riso ou escárnio. E, se você avançar ainda mais, vai conhecer outra mania, mais recente, da arte de fazer graça, praticada à sombra de colunas gregas ou das solenes salas de audiência dos tribunais, onde graves sacerdotes da justiça convertem suas postulationes ou soberanas decisiones em um divertido jogo floral.

Certa feita o juiz de São Bernardo do Campo indeferiu uma petição inicial redigida em versos. Achou atentatória à dignidade da justiça. O autor recorreu, alegando que o vernáculo não discrimina se o pedido é feito em prosa ou verso, desde que seja em língua nacional. Pois ganhou a causa. O tribunal não viu indignidade nas rimas, e mandou seguir a demanda.

Porém, há na história outros tantos exemplos de advogados e juízes dando trato lírico ao direito, a plenas mãos.

Carrara, o mesmo Carrara do “Programma di Diritto Criminale”, fazia uma defesa de ofício perante a corte de Luca, em 1832, quando o presidente do tribunal determinou que raspasse o bigode, pois naquele tempo, no Grão-Ducado da Toscana, os “baffi” eram considerados um símbolo do liberalismo, de conteúdo revolucionário. O grande penalista cumpriu a ordem, mas manifestou seu protesto em versos “Ai miei baffi”, isto é, aos meus bigodes, uma reação que quase lhe custou a prisão.

Do outro lado, porém, o advogado de Pisa, Antonio Guadagloni, não teve melhor sorte e não escapou da condenação, por ter sustentado perante o tribunal, em versos vazados em gracioso sexteto, que a única coisa reta que havia na Toscana era a Torre de Pisa.

Mas, o bigode não era cultivado na Itália desse tempo, apenas como tema conspiratório; mais do que isso, possuía um atributo estético e uma valiosa expressão masculina, assim como o cabelo.

Quando da apresentação de “O Guarani”, de Carlos Gomes, no Scala de Milão, a opera tinha como Peri, o tenor Giuseppe Villani, que, além de gordo, de pele clara, ostentava um largo bigode de pontas enceradas. Era a imagem oposta daquilo que o europeu imaginava ser um selvagem. O maestro então lhe recomendou que tirasse o bigode para cumprir o papel: – “Raspar o meu bigode? Eu nunca raspei o meu bigode, senhor Gomes. Faz parte de mim, assim como a minha voz.” E então cantou a opera, com o bigode e tudo, vestindo uma túnica azul e branca que lhe cobria metade do corpo de pelle bianca. Ao terminar, foi ovacionada de pé, e o maestro chamado ao palco para maior consagração.

O cabelo também teve fama de potencializar virilidade. A crença que vigorava até então era a de que o homem glabro era fraco e inviril, ao perder sua cabeleira, como aconteceu com Sansão. E, dizem os registros policiais que a ameaça de despojar o criminoso de suas madeixas foi o que levou muitos deles a confessar desde logo o crime.

Mas, retomando o tema dos jograis, vale a pena revelar que o museu do nosso Tribunal de Justiça guarda uma preciosa relíquia de composições poéticas. São trovas improvisadas pelos nossos desembargadores nas salas de julgamento, durante as sessões do tribunal, inspiradas no nome das partes ou no tema dos recursos.

Aos que ainda duvidam que os nossos magistrados, pousados de toga e capelo, em reuniões solenes das câmaras do tribunal, durante o enfrentamento das causas e seus longos arrazoados, ainda assim encontram vagar ou mesmo disposição de espírito para improvisarem versos e compor rimas, podemos assegurar a esses incrédulos cristãos, que entre 8 ou 9 livros, que as estantes do museu dizem conter, só em 2 ou 3 deles, recolhemos 122 trovas e a identidade de seus autores.

São rimas que em geral não são ricas, como é comum nas circunstâncias, porque surgem do momento criado e servem para aliviar tensões, o que é, afinal, uma das melhores propriedades do riso.

Entre os 122 trovismos que colhemos a olho, 60 deles são os de Edison Nobre de Lacerda, Lauro Fabricio de Melo Pinto, Lacerda Pinto, Ernani Cartaxo, Paula Xavier e outros ainda.

Uma das rimas que mais servem aos repentistas é a dos Pinto, que, na época, constituíam figuras dominantes da vida política (Magalhães Pinto, Carvalho Pinto), como foram partes em inúmeros recursos, e deram o mote para um dos improvisos de Edison Nobre de Lacerda:

 

Pinto em S. Paulo e em Minas,

Pinto já nos tribunais!

Quanta coisa a vida ensina.

E os galos não cantam mais?

 

Quando no recurso, porém, tem um desquitando chamado Verdugo, Guarita Cartaxo não perdoa e atira o verseto:

 

Julgo o caso por palpite,

Nem sequer a testa enrugo;

Quem não concede o desquite

contra um marido verdugo?

 

Noutro caso, ainda, quando a empresa tem o nome de Esteves Irmãos S.A., Cartaxo despe a toga e assume o papel de severo professor de letras:

 

Do relator, o purismo,

Grita contra o solecismo

Esteves Irmãos, não senhor,

Estiveram, faça o favor.

 

No início do julgamento daquela sessão, Lacerda Pinto passou um cartão a seu colega Nobre de Lacerda, advertindo-o sobre a importância daquele julgamento, pois envolvia pessoas de destaque. Edison devolveu o recado, no mesmo cartão, com sentença de historiador

 

Será, Lacerda, uma glória

Julgar tanta gente ilustre!

Mas há mais mérito e lustre

no julgamento da História!

 

Num recurso em que o genro fora condenado por agredir sua sogra, o escrivão fez constar que “expediu mandado de prisão em favor do réu”. O des. Brezezinski corrigiu, mas a deixa caiu no gosto do colega Édison, que arrematou:

 

Se o pobre inocente agüenta

uma sogra rabugenta

que faz de tudo escarcéu

é bem certo que o mandado

está bem denominado

“Prisão em favor do réu”…,

 

Como se vê, a safra é rica e abundante, e tudo que rima vale um verso. Não se perdoam nomes nem sobrenomes estranhos ou diferentes do comum: Ondina, Fanha, Calopreso, Duque, Bonzito, Botão, Patuleia, Cabente, Deus, Espírito Santo, estão todos lá e levam dos juízes-repentistas uma expressão de graça ou chalaça.

Porém, embora esse jeux d’esprit constitua um entretenimento underground, à margem dos autos, na verdade, ele contribui para aliviar o clima e as preocupações naturais de uma sessão de julgamento e os desafios de seus dramas pessoais e armações jurídicas.

Mas, além disso, conforta saber que os nossos magistrados conservam ainda o gosto de gracejar e sorrir, pois o riso é visto como a melhor terapia para as nossas preocupações, porque ativam o lado direito do cérebro e facilitam as conexões dos seus hemisférios. E liberam endorfina!…

Enfim, encerrando a questão, vale finalizar com Ronald Irving, em “The Law is a Ass?”, a justiça é coisa muito séria, sim senhor, mas se você conseguir olhá-la de mais perto, vai descobrir que ela também está repleta de surpresa e riso.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: cedida pelo autor