Uma das impressões mais surpreendentes para os que se iniciam nos estudos jurídicos em nosso país é a presença e a obra do jurista alagoano Pontes de Miranda, pela extensão e proporções de sua produção de cerca de 300 volumes, abrangendo áreas do maior alcance do universo jurídico, como também se distingue pelo domínio de um surpreendente universo cultural, que abrange o território superior da matemática, da física, da filosofia, sociologia, literatura, antropologia, psicologia e até do exercício da arte da poesia.

Ora, partindo de tudo isso, Pontes foi sempre visto como um verdadeiro universo cultural e o maior tratadista de todos os tempos, como autor de mais de 7 tratados completos e de mais de 90 alentados volumes, cada um de 400 a 500 páginas, além de 14 outros sobre as constituições de 46 e 67 e ainda mais 32 outros dos códigos processuais de 1939 e 73.

Ora, todas essas produções são atribuídas a uma única pessoa, sem que ela contasse com a contribuição de qualquer entidade cultural ou de pesquisa, e mesmo do convívio da vida acadêmica, no magistério superior de qualquer universidade. Diante de uma tão extraordinária façanha não poderia seu autor, portanto, poupar um minuto do seu tempo e do seu esforço para poder transitar por toda uma área imensa de bibliografia, e ter tempo de ler, refletir e digeri-la, além do trabalho da redação de todos seus textos e ainda promover sua revisão e sua correção, num tempo ainda sem computador e contando apenas com a ajuda das pequenas máquinas de datilografia.

Pois vejam também que, sem nunca ter assumido uma disciplina de professor concursado, Pontes de Miranda, então com 44 anos e na condição de desembargador do então Tribunal de Apelação do Distrito Federal, foi concorrer, em 1936, ao concurso de professor catedrático de Direito Internacional Privado, na então Universidade do Rio de Janeiro, hoje Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Concorreu então com dois outros livre-docentes, Haroldo Valladão e Oscar Accioly Tenório.

Apresentadas as teses e corrido uns tempos, em 1939, mas ainda durante o prazo do concurso, seu concorrente Haroldo Valladão, ofereceu à banca examinadora sua impugnação à tese do candidato Pontes de Miranda, sob a forma de livro e com o título: “Impugnação à tese e a trabalhos apresentados pelo candidato Bacharel F.C. Pontes de Miranda, no concurso para Professor Catedrático de Direito Internacional Privado da Universidade do Brasil”. Os argumentos sustentados foram, em geral, os da falta de escrúpulo científico da obra e sua eiva de plágio geral.

Haroldo Teixeira Valladão era advogado paulista, filho de jurista e com 35 anos. Seria futuro consultor-geral e procurador-geral da República, além de consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores.

Realizado o concurso, porém, o livro perdeu seu destino. Segundo o jurista Plínio Doyle não foi dado a ninguém, nem se permitiu dele tirar nova impressão, que fosse comercializado ou disponibilizado. É o que nos conta Antonio do Passo Cabral em seu trabalho “A disputa entre Pontes de Miranda e Haroldo Valladão”, asseverando que, diante das acusações Pontes de Miranda abandonou o concurso e até pediu o cancelamento do cargo de professor honorário da universidade.

Mas, correu depois disso a notícia de que ambas as partes, mediante d’accord messieurs, se desfizeram de todas as cópias do concurso, rasgadas e descartadas pelo próprio Valladão, só restando um único exemplar delas, o do próprio livro, descoberto no escritório do bibliófilo Plínio Doyle.

Porém, apesar de se retirar do concurso, ainda no mesmo ano, Pontes de Miranda publicou, como livro, a mesma tese do concurso, com o título “Nacionalidade de origem e naturalização no direito brasileiro”, que resultou bem acolhido, mas correspondia, na verdade, ao mesmo trabalho objeto da impugnação de Valladão.

Os fundamentos da impugnação são todos de Haroldo Valladão, mas repassados por Antônio do Passo Cabral, professor da Universidade do Rio de Janeiro e livre-docente da USP, com títulos de doutor e pós-doutorado nas Universidade de Munique e Paris, além de procurador da república.

De princípio, ele denuncia, porém, que o vocabulário de Valadão é sempre ácido e de adjetivação pejorativa, visando tipificar desde logo o plágio e exprobar a conduta do seu autor, tanto que logo impingiu, na primeira página da impugnação que a tese e os trabalhos do bacharel F.C. Pontes de Miranda não tinham qualquer valor científico, pois não traziam a menor contribuição pessoal do candidato. Constituíam mera reprodução literal de escritos e livros de autores nacionais e estrangeiros, cujos nomes nem se dispôs a citar.  São escritos alheios, conhecidos ou não, cuja contrafação Haroldo Valladão diz ter feito prova cabal, mediante confronto com os originais utilizados como “guias”, os quais ainda sofreram “tratamento pessoal” mediante inversão da sua ordem, resumo ou troca por outras palavras, de idêntico sentido ou similar, incluindo os rodapés, sem maior indicação.

São muitas as estratégias adotadas, mas a prova do simulacro desponta até em passagens simples, como a de Sebastião Lacerda, cuja informação que repassou já vinha equivocada no original, pois a data do parecer constava ali com data posterior ao da emissão da própria lei. A contradição figura assim no original, e Pontes simplesmente reproduz sem corrigi-la ou anotar.

Igual aconteceu também com o ministro Zeballos, da Argentina cuja participação na Convenção Pan-Americana do Rio de Janeiro não teve, por parte de Valladão, o tratamento científico que merecia. Assim também, são outras tantas as passagens da tese que, a juízo do seu censor, denunciam sua improbidade científica e a falta de caráter pessoal de sua pesquisa como contribuição à cátedra que pretendia alcançar.

Há até uma passagem pitoresca nas impugnações que respeitam aos plágios atribuídos a Pontes, em que ele teria se aproveitado também e literalmente, das pesquisas do próprio Valladão, em mais de cem julgados do STF, contidos no artigo de sua autoria, publicado em 1931 no “Journal de Droit International”, sem que contribuísse com qualquer participação sua, com elemento novo, de lei, de doutrina ou de jurisprudência.

Vale também ter em conta que, conforme observação de Passo Cabral, o vigor que Valladão pôs nas acusações de plágios atribuídos a Pontes de Miranda, aparentemente não teriam causado ressentimento ou maior reação do acusado, como registram os mais de 40 anos passados do concurso e como se deduz, também, da própria presença de Valladão no velório do óbito de Pontes e nas homenagens que lhe foram prestadas.

Enfim, as acusações foram severas e levaram o presumido plagiário por abandonar o próprio concurso e até, posteriormente, a negar ter participado dele, como fez em discurso de posse na Academia Paranaense de Letras, pouco seis meses antes de morrer.

Respeitados porém, os limites deste espaço, vale reconhecer que,  ao fim de tudo, esse concurso constituiu, a bem de ver, um momento altamente significativo para a vida do direito brasileiro e suas configurações superiores, por contar, principalmente, com a presença de uma figura de tão grande expressão nacional e internacional do pensamento do direito, cuja participação comum e suas próprias contradições vão ajudar, certamente, a construir um mundo melhor e mais justo, para proveito do homem e  sucesso dos nossos maiores ideais de justiça  e humanidade.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto do autor: arquivo APL
  • Imagem: cedida pelo autor