Nesta quarentena, estou ajudando minha mulher no que posso. Ela tem avaliado meu desempenho no que designamos genericamente por “serviços extraordinariamente conjuntos do lar”.

Hoje, ela me mostrou contra a luz uns copos utilizados para beber aperitivo, vinho e licor que eu já tinha lavado e me fez ver neles marcas de lábios, mãos etc., mas por fora. Por dentro nenhuma gota de conhaque, vinho ou licor. Ela fez um doce olhar de avaliação, mas era clara a reprovação.

Esclareço que o aperitivo constou de um conhaque Curvoisier, com as medidas certas de limão e mel de abelha, ingredientes dos quais só não selecionei as abelhas, do resto cuidei pessoalmente.

O vinho foi modesto, porque temos bebido todos os dias, e hoje foi o italiano Mongrana, da Toscana, safra 2015, da Agricola Querciabella, 13,5% de álcool (era para o almoço), servido a 17 graus.

O licor foi um Chartreuse (francês, naturalmente), amarelo – não consegui o verde – , extraído de substâncias de 130 plantas, cuja fórmula é um segredo de muitos séculos guardado por monges do convento Grande Chartreuse, situado nos arredores de Grenoble, na França. É verdade que pode ser detectada a presença de erva-cidreira, hissopo, macis, canela, açafrão e algo de teologia e justiça social, mas não exageremos na suposição.

Bem, eu sou um homem de letras, minha formação deu-se em notórios centros de excelência que entretanto não me ensinaram coisas básicas, mas me ensinaram epistemologia. Baseado nesses meus parcos conhecimentos, talvez inúteis no contexto, resolvi, porém, avaliar o meu serviço e peço que me deem sugestões para aprimoramento do projeto.

Vamos lá. Que importância têm essas manchas nos copos diante dos outros cuidados, hein? Dá-se a isso o nome científico de divergência na avaliação de resultados do método hidrotérmico de higienização de vidros após o uso. Sim, os copos foram lavados com água morna.

Preciso prosseguir no experimento de pós-uso, a que os vulgos chamam “follow up”, por influências do Inglês, o latim do mundo, porque ainda não cheguei a uma conclusão. Inspirado em Sinhozinho Malta, com quem contracenava a Viúva Porcina, ora secretária da Cultura, pergunto-lhes em português vulgar: “Tou certo ou tou errado?”.

PS. Postei esta narrativa despretensiosa, pouco mais do que um desabafo com a pretensão da graça para amenizar tantas notícias insidiosas. Mas eis que Ernani Buchmann me pede o artigo para o portal da Academia Paranaense de Letras, a cujos quadros tenho a honra de pertencer. Meus vínculos com o Paraná são óbvios e estão claros em meu percurso. Meu primeiro livro foi publicado em Curitiba, ali vivem queridos amigos, sobretudo de nossos verdes anos quando juntos sonhávamos ser escritores, cineastas, artistas, alguém na vida, uma vez que a ditadura nos condenava a todos a ser ninguéns, menos para nos perseguir, quando nos fichavam, prendiam e esqueçamos o resto: o sofrimento é para sair na urina, o que não sai na grossa, saia na fina, pois a vida é para alegrias como esta: num começo de tarde, o presidente da APL me pede que envie como artigo uma simples postagem. Deixei a revisão do autor nos livros ora em reedição e parei tudo para atender ao Ernani Buchmann. Sua presidência, original por muitos motivos, tem mais esta: está sempre olhando para a frente, para os lados e, como nós, deixando que o passado cumpra sua função de fazer brotar este presente rumo a um futuro diferente e mais ameno.Todavia, sejamos misericordiosos em eventuais lamúrias: nossos pais e avós pegaram duas guerras mundiais e meia dúzia de revoluções perto das quais nosso sofrimento é mínimo.

  • Autor: Deonísio da Silva
  • Foto: Redes sociais
  • Imagem: Congerdesign por Pixabay