Londrina pertenceu à jurisdição de Jataí (hoje Jataizinho), até a criação da comarca em janeiro de 1938. Jataí, por sua vez, passou a compor a comarca de Cornélio Procópio. A esse tempo Alberto João Zortéa advogava na cidade, onde viveu desde então, não só como profissional de reconhecido destaque e apreço social, mas também como professor de Direito e político feito vereador durante duas legislaturas. Em 1975 editou um livro histórico-comemorativo do quadragésimo aniversário da cidade e, numa segunda parte, fez incluir suas crônicas de imprensa sobre a vida e personagens da história local e sua militância na justiça.
O documento é rico e valioso, pois retrata episódios picarescos daqueles tempos bravios, da implantação do projeto colonizador da Companhia de Terras do Norte do Paraná. Desse manancial colhemos, porém, umas poucas pepitas, mais próximas de nós e dele, como as que dizem da advocacia e do desempenho da vida judiciária de então, esta, sobretudo, quando desnuda sua fragilidade e descura dos seus rituais, que aqueles tempos bicudos contavam com a complacência dos costumes.
Episódio hilário foi, por exemplo, aquele que o autor nos conta de uma sessão do Júri de Eduardo Prado (lembrança de sua meninice no interior).
Instalado o tribunal o juiz reparou, entretanto, que muitos dos jurados se apresentavam com roupa do dia a dia, em mangas de camisa, barba por fazer e chinelos. O magistrado irritou-se com o que viu e tomou como desapreço, e até afronta à justiça e ao tribunal. E então fez longa dissertação sobre o papel da justiça e das altas atribuições que ela conferia aos jurados, como gente do povo, agora provida da tarefa de ajudar a distribuir justiça, como juízes de fato e consciência.
E disse mais: suspendia a sessão pelo tempo necessário para que cada um fosse à sua casa, se vestisse com propriedade e voltasse para dar prosseguimento ao julgamento. E finalizou acentuando e marcando as palavras com toda força de sua autoridade: voltem bem vestidos, venham com roupa de ir à missa aos domingos!
Pouco tempo depois voltaram todos, bem trajados e se acomodaram na bancada dos jurados. Agora, porém, todos portavam uma estola vermelha do santíssimo sacramento. Um paramento largo e de seda trazido ao pescoço; símbolo da irmandade católica a que todos pertenciam e costumavam trazer nas missas de domingo… E então, o julgamento seguiu, tal como tinha que ser….
Outra passagem pitoresca ocorreu com Zortéa, quando quis regularizar uma compra de terras na comarca de Jaguariaíva. Num dia daqueles se dispôs a fazer a viagem de Londrina até lá. Foram duzentos quilômetros de terra batida e tráfego permanente. Fez todo o trecho com dificuldade e se apresentou no fórum.
Vinha de longe e queria despachar com o magistrado da comarca um pedido inicial de providência judicial.
Hoje é impossível, objetou o escrivão. O doutor está fechado no gabinete há quatro dias. Está compondo um soneto comemorativo do aniversário da cidade, e tem dificuldade de concluir os dois tercetos finais do poema. Desculpe doutor, mas hoje é impossível, concluiu o zeloso serventuário; não podemos interrompê-lo.
Ora, argumentou Zortéa, venho de tão longe, para um simples despacho e não consigo falar com o juiz… E insistiu: senhor escrivão, não posso perder a viagem!…
Tudo em vão… e, como já era hora de almoço, resolveu fazer sua refeição na própria cidade, enquanto conjecturava o que devia fazer para salvar seu dia e a viagem. E então acendeu uma luz… Foi ao oficial e propôs: por favor, diga ao meritíssimo juiz que eu também sou poeta e posso ajudá-lo a concluir o soneto, se ele concordar em despachar minha petição.
Ora, o juiz gostou da idéia e mandou abrir a porta. Eram elas por elas. E o advogado passou a trabalhar os versos, enquanto o juiz analisava o pedido. A versalhada era fraca mesmo e estava encalhada nos tercetos. Zortéa então compôs e recompôs a trama e acabou arrematando como pôde a ode comemorativa.
Dando os trâmites por findos: o juiz ficou contente de cumprir a promessa de saudar o aniversario da cidade com versos de sua autoria e autoridade, enquanto Zortéa foi de volta, com a petição despachada e a impressão de que, além da própria inspiração, tinha ainda o dom de suprir o estro de poetas menores.
Muitos personagens curiosos ainda desfilam nas crônicas bem humoradas do saudoso Zortéa, como a do então promotor Lauro Fabrício de Melo (depois desembargador) e seu hábito de atuar no Júri de Jataí vestindo casaca ou terno preto. Certamente para dramatizar ainda mais a imagem da justiça e seu papel de acusador público.
E tem ainda aquele do juiz amigo, que fazia as audiências do juízo no quintal de sua casa. O escrivão acomodava o processo e a máquina de escrever num toco de peroba, enquanto o magistrado dava curso ao trabalho forense em manga de camisa, com chinelo nos pés, enquanto sorvia uma cuia grande de chimarrão.
As crônicas também trazem à memória registros de colegas seus, como de Alcides Tomasetti, personagem central do mais trágico episódio criminal do judiciário londrinense, quando morreu com um tiro de Beretta, disparado pelo juiz Ismael Dorneles de Freitas, num confronto de rua.
Tomasetti era um personagem estranho. Advogado bem dotado de inteligência e cultura era, porém, um tanto agressiva e arrogante. Tinha o vezo de redigir seus trabalhos numa primeira versão, em linguagem simples e clara. Feito isso passava a adornar todo o texto, cobrindo-o de um vocabulário precioso, feito de uma linguagem rebarbativa e expressões peregrinas, que os tornavam sua leitura de difícil entendimento, razões que o levaram, a servir de caçoada dos frequentadores do fórum. E, devido a seu trato e sua índole foi fazendo inimigos, culminando com o desfecho trágico que enlutou a família forense de Londrina.
As crônicas ainda repassam lembranças de outras tantas figuras de proeminência na vida da cidade, como o sucesso da estreia do “polaco” Eros Gradowiski na promotoria da comarca. O roubo da casa do juiz Aldo Fernandes e a caça ao ladrão.
O promotor Santa Rita também deixou lembranças que valeram crônicas. Em 1937 era titular de Jataí e ficou conhecido por seus hábitos boêmios e suas vagâncias noturnas. À noite errava pela cidade nos bares e restaurantes, e vez ou outra, desembocava nos bas-fonds da Rua Rio Grande do Sul, em Londrina.
Numa dessas altas noitadas Zortéa vagava a pé com ele pelas ruas escuras da cidade, quando foram atingidos por um forte aguaceiro e, ao fugir dele Santa Rita caiu numa poça de água e se enlameou todo. Ficou bravo e passou a atribuir seu infortúnio à culpa da Companhia de Terras que explorava o povo vendendo caro suas terras, sem trazer nenhum benefício para a cidade, que ainda permanecia às escuras e com falta de calçamento, enquanto os escritórios da empresa eram iluminados a noite toda.
Da raiva passaram à idéia de vingança: iam queimar todas as luzes da Companhia. E foi assim que se postaram à frente dos escritórios da imobiliária e estouraram todas as lâmpadas a tiros de revolver. Posto isso e se dando por servidos, foram dormir desagravados.
No dia seguinte, já curados do álcool e restituídos ao juízo, foram tomados de arrependimento pelo malfeito, impróprio para o promotor da cidade e seu companheiro advogado. E então se apresentaram à direção da Companhia, a quem confessaram o dano e insistiram em repará-lo; como se fez.
Santa Rita foi promotor em Jataí menos de um ano. Foi aposentado em 1938, pelo art. 177 da Constituição polaca de 1937. Reverteu, porém em 1961, com o benefício da lei 171/47, que reconheceu que sua aposentadoria foi ato discricionário do governo ditatorial, pois sua ficha funcional não registrava qualquer falta grave ou desabono de conduta. Ocupou a promotoria de Londrina até 1969, quando faleceu, registrando exemplar desempenho pessoal.
Aqueles eram tempos heroicos, mas turvos. A sociedade foi construída a golpes de coragem e determinação, mas tantas vezes ela conviveu com a complacência dos costumes. E, quem sabe não foi essa tolerância que favoreceu o pitoresco que hoje alivia, e até enfeita, a imagem desse sacrifício. Tantas vezes pensei assim…