O avanço do tempo de vida traz amarguras e algum consolo. Não me abandone, caro leitor, pensando que vou falar das tristezas e dores da velhice! Vou não.

Já deixei essa baba de tristeza em tantos textos… E voltarei a deixar, não tenho dúvida. Mas hoje eu quero falar de outras marcas do tempo.

Descobri que cada vez mais gosto de esquecer. Principalmente esquecer onde guardo coisas. Aliás, coisas-objetos é o que mais acumulamos ao longo do tempo. Só perde em quantidade para os amores.

Onde deixei aquele colar de contas marinhas que ganhei da Anita? Minha cabeça anda avoada: esqueci onde deixei a chave que abre a porta do armário com os presentes das bodas de prata! Em que caixa guardei aquelas fotos da viagem ao México? Meu filho pediu emprestado o cabo HDMI para que ele possa ter acesso ao streaming de filmes: sei que coloquei em algum lugar da casa, mas onde?

Não pense, leitora crítica, que se trata de desorganização mental ou doméstica. Tenho lugares e caixas e baús e gavetas e armários etiquetados para facilitar a identificação dos conteúdos e me poupar o tempo absurdo de sair procurando pelos cantos da casa. Que nem são tantos assim, dado que a casa é um pouco mais do que abrigo para duas pessoas. Trata-se, antes de tudo o mais, de lapsos de organização. Foi naquele segundo antes de pegar o carro e sair meio atrasada para o compromisso: larguei na primeira gaveta que encontrei. Mas em qual delas?

O telefone chamou justo na hora em que estava com o rolo de barbante na mão: deixei em algum lugar para depois colocar no armário dos utensílios de uso imediato. Mas onde foi esse lugar?

O recibo do pagamento do imposto que trouxe do banco ficou dentro de qual livro? Coloquei na pasta de documentos adequada? Deixei na gaveta do armário junto com as compras e as notas de caixa, para depois dar um destino correto?

Mas mesmo nessa mixórdia cerebral, há dias em que resolvo dar um basta na bagunça. Para que servem as etiquetas senão para organizar o caos? Levanto da cama, ponho primeiro o pé direito no chão, lavo o rosto com o melhor dos sabonetes e enxugo com a mais macia das toalhas. Um trato caprichado no cabelo – rebelde, como sempre – e macacão de operário para dar conta do que sei, será um trabalho braçomemorial dos bons!

Caderneta para registrar achados e destiná-los à etiqueta correta. Luvas para abrir gavetas sem temer picadas ou beliscões. Chaveiro de mordoma de mansão de 400 quartos. Óculos de proteção contra pó de guardados, mas com lentes de aumento para ler até as letras minúsculas de antigos impressos perdidos em arcas de tesouro. Uma garrafa de água Perrier para enfrentar a sede de organização com um pouco de classe. E um enorme cesto com compartimentos simétricos (olha a virginiana aí, gente!) para ir acomodando os achados-ex-perdidos. Ah, e um belo capacete colonial, daqueles de explorador inglês na Índia; afinal, caçar perdidos merece ser feito com aplomb.

Aí é que vem a consolação, anunciada lá em cima.

Já na primeira gaveta reencontro aquele convite para aquela festa naquele clube onde começou aquela doce amizade. Embaixo dele, a chave do baú de bijuterias que era pra ser de minha neta, mas sem chave, nada feito. Agora já tenho um presente de aniversário completo! Que consolo!

No armário, lá no fundo, fundinho, amassado feito pele de mulher centenária (quase eu), o mil vezes execrado recibo de pagamento da última prestação da bicicleta (hoje parada e enferrujando no porão) que tive de pagar duas vezes, porque não consegui comprovar. Estava lá, dormindo, aconchegado debaixo do cachecol tri-invernal que deveria ter ido para doação no tempo em que Curitiba tinha inverno.

No pacotinho de celofane guardado com cuidado dentro da caixinha de madrepérola, que abrigou um dia o anel de casamento, a mecha de cabelos de meu filho primogênito, que eu havia prometido dar a ele no dia em que completasse 40 anos, isto é, há uma década e meia atrás!

Mas a descoberta que mais mexeu com meus brios, com a memória falha, com a passagem voraz do tempo, foi a do presente em papel de seda e fita de cetim de um par de brincos comprados em Helsinki para aquela prima apaixonada pela Finlândia, lugar que não teve tempo de conhecer. Brincos guardados para quem não teve tempo também para receber e usar. Escondidos para não alimentar a dor da ausência.

Eu escrevi lá em cima algo sobre consolo. Não lembro mais em que parte deste texto. Não faz mal. Você, leitora atenta, deve saber melhor do que eu onde deixei essa palavra.

Como dizia minha mãe, se está perdido dentro de casa, um dia aparece. O consolo é que esse passado que retorna, sem cobertura, às claras, na levada do tempo, vem embebido de histórias e afetos. Reavê-los é como voltar atrás, viver novamente, querer outra vez.

Hieróglifos da vida.

  • Autora: acadêmica Marta Morais da Costa
  • Foto: arquivo pessoal
  • Imagem: Mabel Amber por Pixabay