Na Mesopotâmia de 4.100 anos antes de Cristo, o livro tinha o formato de um pedaço de argila, que noutro tempo e lugar assumiu também a imagem de um osso, pedra, ou um pedaço de couro, papiro. Dizem que a figura física do livro surgiu na semiárida Suméria, na forma de papel, códice, hoje convertido em equipamento eletrônico, CD.

O seu caminho então se estendeu por todo espaço da humanidade assumindo seu destino próprio, celebrado por uns ou desprezado por outros, senão perseguido e destruído por muitos.

Ele foi a “tábua da lei” que Moisés desceu da montanha com ela nas mãos e a quebrou diante dos adoradores do “bezerro de ouro”. No século III a.C. a biblioteca de Alexandria continha 700 mil papiros quando foi destruída. Foi orgulho do Egito, e o governo atual gasta hoje centenas de milhões de dólares, para restaurá-la e repor seu acervo, calculado em oito milhões de livros.

O maior inimigo do livro, no entanto, foi a guerra, que nunca levou só o intento de vencer o inimigo pelas armas, mas o de destruir a resistência do seu espírito, seu amor próprio. É esse caminho pelo qual você faz do inimigo seu servo. Em 1933, os adeptos do nazismo pilharam a biblioteca da Universidade von Humbold, de Frankfurt para destruir o espírito dos “renegados” do regime. O mesmo destino tiveram as bibliotecas da Universidade de Hamburgo e as de Bonn, Dresden, Bremen, Hannover.

As bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki não destruíram apenas as duas cidades, mas mataram quase toda a sua população, de mais de 120 mil pessoas. O propósito não era só ganhar a guerra pelas armas, mas aniquilar o espírito de resistência do povo, vencendo seu sentimento de orgulho nacional.

Assim, o livro é parte importante da estratégia de toda guerra e ela faz da biblioteca seu alvo predileto, porque é o símbolo maior e mais autêntico do patrimônio cultural de um povo. É sua identidade mais representativa e o seu lado mais vulnerável. Assim, por conta das guerras, a história tem esse lado perverso em que o livro, embora seja nosso maior patrimônio cultural, responsável pela nossa formação cultural e da nossa própria identidade social e política, ele vem revelando um crescente desinteresse pela leitura. As pessoas estão perdendo o hábito de ler, que foi o encanto e até a obsessão de muitos das gerações anteriores. As bancas hoje se desfazem, as farmácias cerram as portas e as editoras encerram suas atividades. O brasileiro lê hoje de 2 a 2,5 livros por ano, dizem as estatísticas, enquanto o americano lê 7, o japonês 20 e o argentino até 22 deles. E isso é atribuído às seduções da vida moderna e ao conforto que ela oferece. Mas não devemos nos esquecer que também que quem despreza o livro corre o risco de perder sua identidade, como ocorreu com tantas nacionalidades que existiram há um tempo, mas não deixaram lembrança, senão aquelas que se possa obter pelo trabalho arqueológico, antropológico ou epistemológico.

Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura disse outro dia que o mundo vive hoje a civilização do espetáculo, caracterizado pela banalidade das artes e da literatura, o sensacionalismo da imprensa e a frivolidade da política. Já ninguém acha tempo nem vagar para leituras de ideias ou para se dar a cogitações especulativas. O interesse de hoje em dia está voltado para respostas prontas e imediatas, como aquelas que as máquinas e os recursos eletrônicos, a internet e os e-books nos oferecem.

Henry Benazet, famoso advogado francês denunciou recentemente o quadro de penúria que hoje predomina nas tradicionais Cortes de Paris, com a presença de plaiders baldos de formação cultural e jurídica e que trabalham longe dos livros, se servindo de simples anotações ou coletâneas e apontamentos de doutrina e jurisprudência tirados do computador.

E nesse propósito vem à baila a iniciativa de Nick Sousanis, professor laureado da Universidade de São Francisco que, ao concluir seu curso de educação na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, defendeu, como tese de doutoramento, o uso do recurso visual sobre o da escrita, no processo do aprendizado e do conhecimento, pregando afinal a simbiose do texto com a imagem.

Pois então, servindo-se do afastamento maior do hábito do livro, promovido pelo próprio leitor, o mercado editorial atual, a pretexto de preservar e divulgar nosso patrimônio cultural, a serviço, sobretudo, da educação da população mais jovem, vem adotando a edição de uma série de livros quadrinizados, tirados da literatura. Assim, foram editados os best sellers de George Orwel; “O sol é para todos”, de Harper Lee, Prêmio Pulitzer de Ficção; obras do historiador israelita Yuval Noah Harari; “Os Sertões” de Euclides da Cunha; as biografias dos filósofos Herbert Marcuse e Martin Heidegger; o pensamento político de Antônio Gramsci, só do que se tem notícia.

A adoção do plano visual para a edição de obras quadrinizadas se propunha a vencer os leitores mais relutantes, como também incorporar as gerações mais jovens, criando um espaço simbiótico de dupla visão, verbo-visual.

Não faltam, porém, objeções, primeiro pelo seu destino próprio, que não atende à mídia infantil, pois, para a pesquisadora Maria Claro Carneiro sua leitura reclama criar um novo vocabulário, próprio para ler imagens, diferente, portanto, da tipologia adotada pela educação escolar. Outro ponto é o espaço dos quadrinhos, bem menor que o dos textos, o que reclama a criação de uma nova iconografia. Afinal, surge a dificuldade da linguagem visual de dosar ideias complexas com “cenas de ação”, como é próprio da linguagem de imagens.

Mais ainda, diante de  tantas outras ameaças diretas sobre a permanência do livro na sua forma tradicional do papel, que inclui também o avanço da guerra eletrônica, instalada recentemente no mundo, semeando smartbooks, rocketbooks, softbooks e outros tantos simulacros dele, resta então indagar,  se diante disso, o livro ainda vai poder manter seu apanágio de guarda e via tradicional do patrimônio cultural da humanidade ou se vai ceder esse primado para poder incluir e conservar também os mais lerdos ou os de tempo escasso, servindo-se de jogos e artifícios de uso recreativo, que facilitam o acesso do conhecimento e substituam o modelo tradicional e mais severo da visão escrita.

É o que se espera ver!…

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: cedida pelo autor