Há algum tempo escrevi sobre o Dr. Índio do Brasil, um modesto advogado que militou por anos na cidade de Apucarana, do norte do Paraná, onde gozava até de certo prestígio profissional. Num curto período servi no seu escritório, a pretexto de fazer estágio, durante minhas férias dos dois primeiros períodos do meu curso de Direito. Foi meu pai que agendou meus préstimos, sem troca de ganho algum: só para que eu pudesse ensaiar meus primeiros balbucios e tivesse uma ideia inicial da profissão que escolhera.

Quando o conheci, Índio tinha a presença e a palavra forte de orador, como supunha ser; devoto de Rui Barbosa, de cujos livros dispunha de uma dezena, e reservara espaço nobre nas suas estantes, ao lado de umas poucas obras de direito.

Penso, porém que, por anos depois tivemos convívio e até confronto na lida forense e pude perceber que o velho guerreiro envelhecia prematuramente. E, porque não tinha o hábito constante do estudo, perdia clientes e as virtudes da profissão, ocupando lugar cada vez menor no espaço profissional.  E eu via sua presença cada vez mais solitária e seu sorriso mais escuro. Terminou deixando a cidade e foi logo esquecido. Soube depois que morreu em Curitiba, aos 57 anos, e lhe prestei uma pequena homenagem, uma lembrança agradecida, num pequeno jornal local.

Mas, o nome dele não era só Índio do Brasil, como tratei; era mais. Era Emílio, seguido de Índio do Brasil, acrescido do sobrenome familiar Linsingen, antecipado da partícula germânica “von”, de significado nobiliárquico.

Ao todo era Emílio Índio do Brasil von Linsingen. O Índio do Brasil, e outros onomásticos indígenas, constituíram acréscimo caboclo que então se dava ao registro do nome do filho, para expressar sua autenticidade brasileira, frente ao português colonizador; e que, posteriormente, o imigrante estrangeiro também adotou para confirmar sua integração ao país que o acolheu.

A sugestão do nome Linsingen e as lembranças que me trouxeram, surgiram da leitura do livro inédito “Família Von Linsingen no Brasil e os Barões e Condes na Alemanha”, grosso volume de autoria de Liuta Pfeiffer Utsch, do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, no qual ela promove a reconstituição histórico-genealógica de sua ascendência familiar e donde colhi parte dos fatos e episódios que se associam a este meu relato.

Na verdade, Dr. Índio viera de Rio Negro e se estabelecera na cidade como um dos pioneiros da advocacia. Porém, era descendente de um numeroso clã familiar alemão, de origem aristocrática, os von Linsingen, que a partir do segundo meado do século XIX teve um dos seus ramos radicado no sul do Brasil. O patriarca brasileiro Georg Wilhelm von Linsingen, veio de Hannover, em 1858, para se instalar na Colônia Dona Francisca (Joinville), em Santa Catarina, onde criou família, e depois se mudou para Curitiba, e daí para Rio Negro, onde os filhos mais velhos construíram dois engenhos de mate, em Rio Negro e Mafra, em torno dos quais se congregou toda a família.

O advogado Índio foi então neto do ervateiro Emílio, figura de destaque local e que compôs com seu nome a razão social das empresas, tidas como das primeiras exportadoras de mate para o Prata. Porém, só então pude completar esta relação genealógica, que ainda se revelou maior quando me inteirei de que os von Linsingen representavam, na verdade, uma antiga e influente linhagem aristocrática do reino de Hannover, que incluía barões e condes, com brasão de armas, burgo próprio, residências nobres, terras e florestas onde é hoje a Alemanha.

A nobreza dos von Linsingen foi consagrada por uma lenda que remonta a 10 de agosto de 955, de que foi palco a batalha de Lechefeld, contra a invasão húngara, localidade próxima de Augsburgo, na Baviera, ocasião em que um camponês salvou a vida do Imperador Otto I, o Grande, escondendo-o numa plantação de lentilhas. Contido o avanço dos magiares-húngaros, o imperador ganhou o reconhecimento europeu e como gratidão à bravura do seu benfeitor, concedeu-lhe o título de cavalheiro, com o nome de Lisingen (linsen, lentilhas?), símbolo que iria servir para a composição do seu brasão, onde foram colocadas sete lentilhas e, como adorno do elmo, uma vagem de lentilhas.

Porém, os von Linsingen vieram a ganhar prestígio oficial durante o tempo da sucessão do trono inglês, quando da união dinástica da coroa inglesa com a do reino de Hannover, ocasião em que inúmeros militares hannoverianos ganharam presença e prestígio no comando do exército e da armada real inglesa. Ao que então eu soube, durante os séculos XVIII e XIX os Von Linsingen tiveram 14 generais e 24 coronéis, nas armas da Inglaterra e da Alemanha, e, durante a Primeira Guerra Mundial 3 generais von Linsingen participaram diretamente do conflito.

Porém, de todos esses eventos nobiliárquicos e militares, ganhou fama a esse tempo, e até chegou a constituir grave transtorno para a casa real inglesa, o namoro da baronesa Caroline von Linsingen e o príncipe Guilherme, duque de Clarence, filho do rei Guilherme III, e herdeiro presuntivo do trono da Inglaterra e Hannover.

Ambos tinham pouco mais de 20 anos quando se encontraram pela primeira vez em 1790, e voltaram a se encontrar, tempos depois, numa festa no palácio Ricklingen, da família Linsingen, ou nas termas de Bad Pyrmont, ponto de encontro da sociedade elegante, onde os von Linsingen costumavam fazer temporadas.

Caroline era vista como uma moça muito bonita, inteligente e viva de espirito, e o resultado foi o jovem casal ser tomado de ardente paixão, que a princípio passou despercebida dos outros, mas não para o pai dela, o barão Johan Wilhelm II, general de infantaria do 12.º Regimento, senhor de Bitkenfeld e Udra, bem como do palácio de Wallmoden e outras ricas propriedades.

O barão recebia sempre as graças da corte inglesa, com quem mantinha mútuas relações cordiais e muitas vezes foi hóspede dos reis da Inglaterra. Percebendo o envolvimento amoroso do jovem casal, apressou-se em dar conta do comportamento deles à rainha, e se surpreendeu, entretanto, quando soube que a notícia foi recebida com naturalidade, como própria dos anos, supondo que os jovens mantinham simples relações de amizade e natural familiaridades, sem consequências, pois a rainha até já havia presenteado Caroline, pelas mãos do filho, com uma agulha de prender tecidos, contendo um monograma de brilhantes.

Ocorre, porém, que embora fosse intenso esse amor, os amantes mantinham prudente segredo, até à altura em que decidiram consumá-lo mediante uma união secreta, à revelia dos pais e com o propósito de impedir qualquer oposição da família, diante do fato consumado. Seria no aniversário de William, que a princesa de Braunschwieg, Irmã do rei George III e sua tia, queriam festejar no palácio de Bad Pyrmont, com uma recepção pela manhã e encerrá-la à noite, com um baile dedicado ao sobrinho.

Como não podia deixar de ser, o aparato matrimonial foi montado às ocultas, com ajuda do Lord Richard Dutton, amigo de William, e do general Barão Ernesto von Linsingen, irmão de Caroline e poucos outros amigos; os mais íntimos. A cerimônia religiosa seria realizada numa capela próxima do local e ordenada pelo pastor escocês Parson.

Estava então combinado que, após o baile, Carolina diria ao barão e familiares que iria dar uma cavalgada pelos arredores, para contemplar o nascer do sol. Na verdade era esperada pelo noivo e testemunhas na capela do palácio do barão de Stietencron, próxima a um bosque, onde chegou e se aprestou rapidamente para a cerimônia religiosa.

E, então foi vestida de seda branca, cingiram-lhe a cintura com um cinto de ouro com fecho de diamantes, seu colo foi ornado com a cruz da ordem das jovens nobres e na cabeça passou a ostentar uma coroa de mirte, que lhe ofereceu o irmão.

E foi o próprio Ernesto que fez o papel de pai, conduzindo-a ao altar e confiando-a ao noivo que a aguardava para as bênçãos nupciais. Os votos foram colhidos em clima de intensa emoção, mas a alegria dos presentes não se deixou levar pela apreensão geral.

Consumada a cerimônia e festejada a união, todos retornam ao castelo, porque o noivo na manhã seguinte tinha que receber as homenagens dos convidados da sua festa de aniversário; enquanto a noiva tinha outro compromisso, o de pertencer ao marido só depois de um ano, promessa que certamente não cumpriu, pois em 25 de maio do ano seguinte nasceu o filho dessa união, William B. von Linsingen, cuja sobrevivência ainda hoje está envolvida em mistério ainda não desfeito.

O segredo foi mantido por um tempo; depois vazou e chegou ao conhecimento do barão, que se pôs contra e viajou a Londres para dar conta pessoal aos reis do sucedido, e a quem entregou a solução final.

Ora, os interesses políticos e pessoais do governo envolvem, no mais das vezes, propósitos que se sobrepõem aos comuns dos seus governados. Sobretudo nesse tempo, em que os casamentos serviam em geral como instrumento de composição política e jogos de poder. E aqui o imbróglio suscitava questões tidas como fundamentais: como a validade do casamento pelas leis inglesa e alemã, diante principalmente a Law Mariage; como também a questão mais delicada e pessoal da sucessão do trono.

Então, em resposta, a Corte exigiu a separação do casal e a desconstituição do casamento, para que dele não ficasse prova nem memória. E nesse sentido o príncipe foi interpelado e Caroline admoestada por carta pela rainha. Pressionado pelos pais, William acabou aceitando a separação, mas só se houvesse a concordância de Caroline.

Ela viu enfim seu sonho de amor se desfazer. Embora ele confirmasse seu amor e declarasse que, caso se tornasse um dia sucessor do trono, ela governaria com ele, Caroline acabou cedendo à imposição real, com receio, por certo, de que, noutro modo, seu amado fosse prejudicado. Diante do seu abatimento e desconsolo, o pai a levou em viagens pela região, conhecendo termas e clínicas de descanso, durante cujo passeio, porém, Caroline ficou doente e a viagem teve que ser interrompida.

 

Daí em diante ela passou a ser uma mulher doente, tomada de uma febre implacável que a devorava e tirava sua esperança de vida. E chegou a tal ponto, que numa dessas ocasiões passou por morta, vítima talvez de alguma forma de apoplexia, e só não foi levada ao túmulo por intervenção de um jovem médico, Adolfo Meinike, de Hildesheim, que pediu que o velório fosse retardado, em tempo de ela recobrar a consciência.

Na história de sua infelicidade como amante e mãe, existem versões diferentes sobre o destino do seu primeiro filho, cuja ocultação ou escamoteio de sua existência é atribuído ao empenho do próprio governo inglês, interessado em apagar toda memória do episódio amoroso e suas eventuais consequências. O filho de Caroline é, por primeiro, dado por morto em seguida ao parto, ou, então se trata do jovem William, falecido por afogamento em 1807, aos treze anos. Há também o relato documentado de que o menino ao nascer foi confiado e criado pelo casal judeu Ruben Meyer, com o nome de Hans Georg Meyer.

Hans cresceu, foi militar e integrou a armada hanoveriana, onde alcançou alto posto e frequentava os círculos da corte. Recebeu valiosos agrados da rainha Vitória e conhecia detalhes de sua origem, através das versões que corriam na época pela corte local. Caroline, por sua vez, mortificava-se com as lembranças de seu amor perdido.

Enquanto isso, durante o atendimento médico de Caroline, o Dr. Adolfo Meinike encantou-se com a beleza e a sensibilidade da jovem e lhe propôs casamento. Era como o barão supunha que o drama pessoal de sua filha pudesse ser resolvido. Porém, o príncipe ainda insistia que resistisse, pois o tempo podia vir a favorecer a união dos dois.  Caroline, porém, perdia toda esperança. Era mulher tímida, fraca de saúde e emocionalmente fragilizada, para poder se contrapor às forças poderosas que se armaram contra ela. Adolfo, por sua vez, era homem bom e atencioso, a quem ela se sentia devedora da própria vida.

Depois de casada, em resposta a uma acusação e do convite de William para que voltassem a se amar, a pretexto de que se entregara a uma união sem amor, por mera gratidão, o que iria tornar os dois infelizes, respondeu mais segura de si: “Meu médico e marido me salvou do túmulo e eu quero viver. A volta para você é impossível, pois sua vida está comprometida por deveres inescapáveis. Não sei qual de nós tem o fardo mais pesado.”

O casamento ainda durou muitos anos. Tiveram dois filhos, Henriqueta e Henrique e viveram em Hannover, depois em Berlim. Adolfo não teve sucesso na profissão e se viu obrigado a aceitar o emprego de químico, numa mina de carvão em Blansko, na Morávia, da atual República Tcheca, onde passaram a viver muito modestamente.

 

Enfim, Caroline morreu em 31 de janeiro de 1815: tinha 46 anos. Depois que deixou Caroline, o príncipe William, duque de Clarence, passou a viver com a atriz londrinense Dorothea Jordan, sua amante por vinte anos e com quem teve dez filhos. Por exigência do rei Georg IV, seu irmão, em 1813 se casou com a princesa Adelaide de Sachsen-Meiningen e em 1830 o sucedeu no trono, como rei do Reino Unido da Inglaterra e da Irlanda, rei de Hanover, duque de Braunschweig e Luneburg.

Faleceu em 20 de junho de 1837, no Castelo de Windsor, mas não deixou herdeiros por direito, pois suas duas filhas do casamento com a princesa Adelaide morreram ainda pequenas. Com sua morte se extingue a linha sucessória reinante dos baixo-saxões da Casa de Hannover e sucede no trono sua sobrinha Vitória, com 18 anos, filha de seu irmão mais novo, o falecido duque de Kent. Vitória viria, então, inaugurar um longo reinado de 1837 a 1901, um dos períodos de maior grandeza do Império Britânico.

Quando se soube do casamento secreto do príncipe William e Caroline, a Corte inglesa se apressou em desfazer e destruir toda documentação e lembrança, em que se fizesse alusão a ele, especialmente sobre o advento de uma criança, filha dessa união.

Com relação a ela, fez então correr à época a versão de que o recém-nato já estava morto por ocasião do parto ou durante seu procedimento. Mas existem hoje outras versões, que admitem, entretanto, que essa criança sobreviveu e estava viva na sucessão do pai. A ser assim, num exercício de história ao avesso, destinada a admitir o que se nega ou refazer o que se desfez, a presença desse filho, fruto de um casamento nobre e válido implica no consequente reconhecimento de sua condição de herdeiro legítimo da coroa britânica, por sucessão de seu pai, rei William IV, título que lhe foi injustamente subtraído. E assim, desfeita a trama, teríamos por prêmio do amor redimido, Carolina e seu filho, nomeado Hans Georg ou que nome seja, inaugurando na Corte da Inglaterra a linhagem dos von Linsingen.

E, mais ainda se pode conjecturar, com quem já fez essa projeção para nós: mantida a aliança das Casas da Inglaterra e Hannover certamente não teria ocorrido a Primeira Guerra Mundial, o mundo não teria assistido a vitória do Nacional Socialismo nem a ascensão de Hitler. E, quem sabe se o nosso mundo pudesse desfrutar de um longo período de paz…

Mas, o que importa dizer, em resumo e a contrário sensu, é que, uma vez restaurada a justiça da sucessão, com a entronização do filho de William IV e da baronesa Caroline von Linsingen, preservando-se assim a união dos dois reinos, com a garantia da paz do mundo; aquele velho e modesto advogado de Apucarana, Emílio Índio do Brasil von Linsingen, cuja inveja maior eram as glórias de Rui Barbosa, mas que, lamentavelmente,  acabou esquecido e precocemente envelhecido, não teria de modo algum deixado a pequena cidade do interior, para ir morrer mais longe e mais cedo.

Certamente teria seu nome incluído na linhagem da família real inglesa e seria cercado do prestígio aristocrático e das homenagens que sua vida e seus ideais nunca puderam experimentar. São os paradoxos da história!… Por isso disse Pascal que se o nariz de Cleópatra fosse maior, tanto Marco Antonio não teria se apaixonado por ela, como a história do Império Romano seria outra. Você concorda?

Sic transit gloria mundi

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: cedida pelo autor