Há precisamente cem anos – 1918 –, o grande poeta curitibano Tasso da Silveira (1895-1968) tinha oportunidade de publicar o seu primeiro livro, Fio d’água. Penso que a efeméride constitui um bom pretexto para uma revisitação breve da opera omnia poética do notável polígrafo paranaense.

Poeta, crítico, ensaísta, professor, conferencista, historiador da literatura, teatrólogo, romancista. Tasso da Silveira foi tudo isso. Contudo, a poesia é o filão principal, a matriz, a fonte da sua grandeza criadora. Em face dela, em face dessa poesia eterna a que se referiu Adonias Filho, todo o resto se eclipsa, apaga, desmorona, desaparece, soçobra, sucumbe.

Como Pessoa e Drummond, Tasso é um poeta diversificado, múltiplo, plural. Plural nas formas estruturais, nos ritmos vários. Plural nos temas e nos conteúdos retóricos. Plural na inspiração. Note-se, porém, que essa pluralidade nunca o levou a saltar, metafisicamente, para os abismos da alteridade heteronímica, pessoana ou não. Fiel sempre à ortonimia, Tasso nunca deixou de ser Tasso.

Há muitas facetas, todas expressivas, na poesia do autor de Fio d’águaA alma heroica dos homensAlegorias do homem novo. Basicamente, ela se filia ao espírito clássico (de Petrarca a Camões, de Dante a Malherbe) e ao simbolismo, perpassado de acentos parnasianos (raros), haurido nos mananciais de Verlaine e Cruz e Souza, Antero e Eugênio de Castro. (E de outro luso, hoje quase esquecido, Antônio Correia de Oliveira, que ele chegou a considerar, num estudo alentado, o maior poeta do mundo do seu tempo). Sobretudo, Tasso respira o perfume suave – e às vezes nem tanto – do jardim religioso de Paul Claudel, rodeado pelos claustros do convento.

Música. Esta desempenha um papel preponderante em toda a poesia tassiana. A musicalidade, nascida nas pautas do espírito criador, preside – onipresente – ao cerimonial litúrgico da sua construção poemática. No pórtico dessa catedral cantante, nós poderíamos até colocar, como um emblema, o dístico de Mallarmé: ut musica, poesis.

Lírico, essencialmente lírico, Tasso é irmão de Cecília Meireles, sua companheira de Festa, na espiritualidade congênita. (Seria uma tarefa sedutora, aliás, traçar um paralelo entre a criadora de Vaga música e Solombra e o artífice de As imagens acesasO canto absoluto seguido de Alegria do Mundo e Cântico ao Cristo do Corcovado).

Várias são, como já vimos, as facetas da poética tassiana. Uma, porém, é fundamental: a faceta religiosa. De fato, a religião é uma vertente basilar do seu rio poético.

No campo religioso, são ascendentes de Tasso – um próximo e outro remoto – Claudel e San Juan de la Cruz. Do próximo herda (ou assimila, premeditadamente) os grandes ritmos polifônicos, as ondulações de mar alto, as inflexões bíblicas. Acaba mesmo por recriar em português o famoso vers claudelien, algo whitmaniano na sua arquitetura composicional.

Harmonia e ritmo – sobretudo, ritmo: neles reside a espinha dorsal do organismo poético de Tasso. Para demonstrar o fato, leia-se o introito do poema A cruz:

Das mãos do Senhor erguiam-se labaredas,

dos pés do Senhor erguiam-se labaredas,

dos flancos do Senhor erguiam-se labaredas

de dor…

O corpo divino estorcia como um tronco

                                verde na queimada.

O incêndio de dor crepitava violento

em toda a carne do Senhor:

E as mãos que tinham abençoado

                                  infinitamente

eram agora folhas crestadas,

e os pés que tinham sagrado

         os caminhos do mundo

eram agora rebentos retorcidos,

e a cabeça que abrigava os pensamentos eternos

era uma fronde que ia desabar reboando.

A poesia do autor de Canções de CuritibaContemplação do eterno e Puro canto tem qualquer coisa de unguento balsâmico, cicatrizante, passado amorosamente sobre essa ferida aberta que é, em certos momentos, estar vivo. Unguento feito de espiritualidade, apetite de transcendência. E mais: vocação para o Absoluto, o Infinito, o Eterno. Ânsia de Deus. Essa ânsia, essa esperança radical que se realiza e cumpre através da Fé. Que não apenas remove montanhas – é o cordão umbilical ligando o Criador à criatura.

Assim, na horizontalidade da terra, o homem – singularmente personificado no poeta, em Tasso –, só pode aspirar a Deus, aquela grande ogiva ao fim de tudo, de que falou Pessoa. O que faz da poesia religiosa tassiana, como diria Claudel, l’oeuvre de Dieu qui fait la matiére inepuisable des récits et des chants du plus grand poète comme du plus pauvre petit oiseau.

Por isso, os versos do poeta têm algo de incenso que se eleva em volutas para o céu. E os poemas lembram preces, orações comovidas murmuradas no silêncio de uma capela perdida na infinita solidão do mundo:

Minha oração de graças

pela hora reveladora

em que, do fundo de mim mesmo,

da agonia do meu corpo, do meu espírito

                                e dos meus sentidos,

e do silêncio profundo das coisas do mundo,

me chegou, como uma bênção,

a voz de Deus…

A poesia de Tasso é uma resposta a essa voz. Seus poemas não são estruturas monológicas – mas diálogo, intercomunicação. Local de intersecção do divino e do humano. É aí, precisamente, que vemos surgir, gênese e aurora,

Meu canto inocente e novo

como o dos pássaros matinais.

Há luz, muita luz, nos canteiros irisados do jardim poético de Tasso. Mas há sombras também. E trevas. Às vezes fundas, carregadas. Fazendo também a sua ronda consuetudinária nas veredas do quotidiano.

Mais que atitude, postura, ou mesmo estratégia para a conquista do céu, a religiosidade, em Tasso, é processo que eleva, exalta, transcende, ultrapassa, transfigura. O quê? O próprio homem. A própria vida, sempre grávida de um mistério profundo.

Enquanto, para Cocteau, a poesia é uma religião sem esperança, o nosso poeta pensa exatamente o contrário. Seu pensamento é a antítese do pensamento do francês. Talvez por isso ele é o poeta da esperança. Mesmo quando atravessa os vales do desespero e da morte. Pois há sempre um sol amanhecendo além das falésias que se debruçam sobre o mar da eternidade.

Disse poeta da esperança? Direi mais: poeta da fé. Em quê? Em Deus, na ressurreição, na vida eterna. Na perfectibilidade humana. Em que pesem as contradições, os óbices, as tentações, os pecados. Humanos, demasiado humanos, como diria Nietzsche. Mas redimidos por Cristo. Para sempre.

Não nos equivoquemos, porém: a religião, na sua triplicidade moral, mística e metafísica – trinômio integrante da espiritualidade –, bem como na dicotomia ritual-litúrgica, não é apenas a matéria-prima do poeta. É mais: pulsação cardíaca, fosforescência interior.

A poesia religiosa de Tasso é da linhagem da Noche oscura, das Cinq grandes odes ou de La messe lá-bas, de Juan de la Cruz e Claudel, respectivamente. Entronca nelas, sem dúvida. Sem ser inferior. Talvez as supere, quiçá.

Em Tasso, o poético, espécie de fluido elétrico, não é – no terreno religioso, sobretudo nele – uma corrente contínua, mas alternada. Feita de alternâncias entre polarizações de sinal contrário. Positivo e negativo: Bem e Mal, inocência e culpa, virtude e pecado, alegria e dor. Profano e sagrado, condenação e salvação, divino e humano, real e sobrenatural. Vida e morte. Morte e ressurreição.

A grandeza da poesia religiosa de Tasso (irmã da poesia de Jorge de Lima, Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt, no seu côté religioso, é claro) não reside no adjetivo, mas no substantivo. Explico: ele é um grande poeta religioso por ser, antes de tudo, um poeta grande. O distinguo parece demasiado sutil, se não bizantino? Talvez seja. Mas é fundamental.

Que dizer do coeficiente de beleza que se manifesta em Tasso, no território religioso e alhures? É bastante elevado. Esse coeficiente resulta, quase sempre, de uma tensão surda: a que contrapõe o expresso e a expressão. A matéria, na sua materialidade significante, e a forma, sub specie aeternitatis da sua síntese dialética.

Poeta religioso, poeta cristão, é no catolicismo que Tasso mergulha as raízes da sua árvore poética. O corpo de ideias, valores, princípios – e até mesmo dogmas –, hauridos nas páginas da Bíblia e no magistério eclesial (Roma locuta…), fazem dele um autêntico poeta católico. Assim, a religiosidade, o cristianismo, o catolicismo, acabam por tornar-se fundamentos, vigas-mestras de um humanismo visceral. Que se derrama, aliás, em outras latitudes (e longitudes) da sua obra vasta e multímoda. Um humanismo que vê na criatura humana um ser vocacionado para o Pai, e nas misérias e dores do homem, purificantes e catárticas, o trampolim para a felicidade eterna.

Apesar de todas as humanas vicissitudes e imperfeições, o poeta aposta na vitória final do espírito sobre a carne. Confia em que, no final da história humana – individual ou coletiva, pouco importa –, há de prevalecer o grito reconfortante e consolador do salmista: ubi, mors, victoria tua?

A relatividade humana tatuada na epiderme de um canto divino: essa a quintessência da poesia de Tasso, Poeta Maior. Se é grande a força da poesia inspirada pelo céu, como canta Shakespeare (much is the force of heaven-bred poetry), a de Tasso corresponde ao pensamento shakesperiano.

Concluindo: da morfologia da imanência humana à sintaxe da transcendência divina, a poesia de Tasso da Silveira descreve um círculo perfeito. No centro, Deus. Cada raio, o homem. O que faz do seu canto um dardo arremessado para as alturas. O poeta bem o sabe:

Eu sei, porque sou vós,

porque sou vossa carne,

porque sou vosso espírito.

Tasso Azevedo da Silveira, nascido em Curitiba em 11 de março de 1895, faleceu no Rio de Janeiro, em 3 de dezembro de 1968. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente no início da década de 60, quando me confessou a sua ascendência trasmontana. É certamente um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, da mesma forma que é, individualmente, o primus inter pares da Poesia Paranaense, data venia a Emilio de Menezes, Emiliano Perneta, Leôncio Correia, Dario Vellozo, Colombo de Souza, Leonardo Henke, Paulo Leminski, Helena Kolody, Walmor Marcellino e tutti quanti.

*Texto originalmente publicado na Revista Ideias, novembro/2018.

  • Autor: Acadêmico João Manuel Simões
  • Foto: Arquivo