Certamente todos nós fomos surpreendidos no último dia 8 de janeiro, com a notícia da invasão de uma turba de bolsonaristas à sede dos três poderes em Brasília, com depredações do Congresso Nacional, do Palácio do Governo e das dependências do Supremo Tribunal, levadas pelo propósito visível de promover um autêntico golpe de estado.

À visão bem clara, a ação dos vândalos não tinha a intenção apenas de manifestar sua insubordinação à decisão da última eleição que levou à vitória a Lula.

Penso mais adiante que, frente a falta de resposta a seus rogos e clamores ao pé dos muros e portões dos quarteis e ainda no aguardo de seus resultados, a horda chula de terroristas e suas lideranças não resistiram à tentação de adotarem a iniciativa de promover o próprio golpe de estado, na confiança de que, diante do fato, o exército interviesse Iogo após, para impor um regime de força, igual ao do passado, desfazer o resultado da eleição e impedir o exercício do novo governo eleito, tanto quanto para assegurar a permanência do poder dos vencidos do pleito.

Penso também, que a ideia do comunismo foi um dos motes ou o mito-maior a serviço dos insubmissos, para infundir à multidão uma espécie de poder mágico, místico ou superior, igual ao de tantos outros movimentos históricos semelhantes e talvez menores, mas com força de levá-los a subverter a ordem social e arrebatar o poder definitivo. De outra parte, convém lembrar que o partido comunista tem mais de cem anos de fundação no Brasil e é o mais antigo deles, sem que nunca tivesse revelado condições de arrebatar o poder, pela força ou pelo voto.

Registramos apenas episódios locais de tentativas, todas elas reprimidas. Lula até contou com o apoio do partido comunista, em eleição anterior da presidência, mas perdeu para Fernando Henrique Cardoso. Por sua conta também já exerceu o poder nacional da República por cerca de 14 anos, sem nunca mostrar, entretanto, qualquer apoio ou simpatia maior às pretensões dos comunistas, para favorecê-los no intento de ganhar o poder.

O movimento de agora tem semelhança com outros mais do passado, como os das multidões levadas por beatos e pais de santo em oração, com a cruz de Cristo alçada à frente, pregando pelas estradas as orações do evangelho e da salvação das almas. Todas elas, porém, cobraram alto custo ao país, em vidas e danos, como Canudos, de Antonio Conselheiro, com o sacrifício e 5 mil soldados e 25 mil sertanejos, ou o Contestado, de João Maria, com a perda de 20 mil vidas, o fogo de 9 mil casas e a devastação de florestas de 15 milhões de pinheiros, a pretexto de promover a salvação das almas e a glória de Deus.

Enfim, em busca de uma interpretação necessária, vejo também na sede do nazismo, uma manifestação de cunho semelhante ao fanático, mas sua promoção inclui, entretanto, uma prostração natural de um povo como o alemão, vencido por uma guerra que sacrificou 20 milhões de vidas, perdeu sua versão até bem acolhida de representar uma humanidade de qualidade superior, de raça e civilização, atestadas até por autoridade tidas por científicas.

O que mais surpreende, porém, é realmente a força alcançada por esses desatinos de agora, à conta de servirem propósitos aparentemente religiosos ou meramente políticos. E conseguirem atingir a um tal grau geral de alcance e força interior que inclui toda sorte de dano e malefício, como também toda sorte de posição social ou título cultural. Vejo neles empresários de toda qualidade social ou doutores de diferentes graus culturais, possuídos do mesmo ímpeto e desatino, investindo contra os maiores símbolos políticos e culturais da nação.

Vejo mais que a força, vejo a participação de todos os graus de vida social e formação cultural, desde os primeiros níveis aos mais altos e mais simples. Envolvendo todos: professores e doutores, aproveitadores e intrujões, todos irmanados e levados aos confins dos desatinos.

Não vejo, porém, motivação que justificasse qualquer propósito mais grave de golpe de estado, sobretudo para correção do processo eleitoral ou político que vem sendo adotado pelo governo.

Quanto à eleição, o governo anterior já se comprometera de antemão a se prevenir contra a tentativa até anunciada de comprometê-la, conferindo e corrigindo seus caminhos e suas arestas, até obter sua confirmação final em sentença judicial homologatória.

Quanto ao exercício do governo, ao que se sabe ele não trouxe qualquer programa prévio de desempenho econômico e social, senão cultivou uma linha exclusiva de promoção pessoal e relutante agressão a seus opositores e às redes de opinião e instituições de decisão, mediante manipulação de partidos, cargos e a oferta de benefícios exclusivos, tentando ainda manter em expectativa a opinião de merecer sustentação e confiança das forças armadas e poder contar com elas na adoção de um eventual regime de exceção.

Parece mesmo que vivemos hoje momento de maior gravidade, por conta talvez do crescimento do próprio país, por seu tamanho atual e suas pretensões, frente a um quadro internacional atual de competição e disputa de poder e riqueza, para o qual o governo e o pais país têm dificuldades de conviver.

Assim concluindo, todavia, mesmo que tenhamos tido, tantas vezes, a experiência valiosa e histórica de respeitar decisões democráticas para nossas divergências, através do voto popular, mesmo para pagar nossa liberdade, é lamentável que ainda persistamos em repetir práticas antigas, próprias das pequenas repúblicas coloniais espanholas, de armar batalhões de submissos às suas crenças pessoais ou a seus juízos esotéricos, para se contrapor pela força e pela práticas do vandalismo, ao resultado de urnas conferidas pela isenção e confirmadas por decisão judicial final.

Confio que os culpados serão enfim punidos e o país confirme sua tradição democrática e abjure, de vez, toda manifestação de arbitrariedade política.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
  • Imagem: daherjr por Pixabay