Conheci José Wanderley Rezende no convívio da vida forense. Ele juiz de Arapongas eu agente do Ministério Público. Mas não fomos simples colegas de ofício. Fomos bons amigos de guardar intimidade e compartilharmos juntos de jantares e eventos sociais. Anos depois, voltamos a nos encontrar, nas mesmas funções e com a mesma relação de trabalho, mas já na Vara de Execução Penal e Corregedoria dos Presídios da capital, ocasião em que renovamos nosso bom convívio, dividindo os problemas jurídicos e compartilhando dos dramas humanos da vida penitenciária.
Em 1995 me presenteou com seu “Caminhos”, uma brochura reunindo 86 poemas. Mas agora já era desembargador e havia publicado “Folhas Caídas”. Na ocasião eu o saudei na imprensa, homenageando seus flagrantes do cotidiano, convertidos em mimo-rimas, colhidos do diário da vida, em que o poeta se detinha então diante da noiva no altar ou fazia despertar a emoção de ouvir um velho carrilhão batendo horas de saudade e dolência. Noutras estampas o poeta comemorava o desdobrar da noite que se avizinhava ou o anúncio da primavera no chilreio da passarada. Tem até o poeta que vai às compras no shopping ou a imagem do hospital com suas dores e as ruas com seus bulícios. Havia, também, um particular devotamento às canções de amor, tecidas de ternura e devoção, dedicadas à esposa Cirênia, sua musa inspiradora e companheira de toda a vida.
Argus Cirino, da Academia Mato-Grossense de Letras viu nele o arauto da paz, com o dom de transformar em emoção e alegria todas as contrariedades da vida. Além de “Caminhos” e outras criações poéticas, Wanderley fez prosa também, que incluiu “No Mundo da Ideias: Pensamentos” e “Retalhos da Vida”, mas, acima de tudo, foi poeta.
Eu perguntava então se o exercício da judicatura não impedia o uso simultâneo da toga e da lira. Será que o bronze da lei e o rigor do juízo jurídico não espantavam os fluidos de sua inspiração poética?
Soube depois, porém, que havia então associações de juízes e editoras dedicadas ao exercício, à edição e divulgação dos versos dos juízes-poetas. E havia, como há, muitos deles…
Assim, a exemplo, Raimundo Correia, o mais consagrado dos nossos parnasianos, que, no seu tempo, se ressentia, da condição de poeta. Nutria certo pudor epistemológico de que a notícia de sua inspiração pudesse comprometer sua autoridade de juiz ou a respeitabilidade de suas decisões. Então, se alguém o saudava como poeta, logo reagia meio ríspido: “Raimundo Correa, juiz da 3.ª Vara Criminal! Isso sim!” Certa feita, no início da carreira, quando promotor de São João da Barra, Raimundo chegou a negar suas próprias rimas, quando um político local indagou dele, se mostrando ansioso e incrédulo, se era verdadeira a notícia que corria no meio do povo da cidade de que ele era poeta.
Hoje, porém há razão para supor que juízes e poetas podem conviver no mesmo terreal. Adelmar Tavares, então desembargador-presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da cadeira n.° 11 da Academia Brasileira de Letras dizia, “se a poesia é a linguagem de falar com o céu, distribuir justiça é se aproximar de Deus. O juiz e o poeta estão irmanados na divina missão de prover o destino da humanidade.” E falava de si com igual paixão: “Jamais reneguei minha arte por envergar uma beca. Jamais deixei de entoar uma estrofe com a mesma voz com que reclamo justiça.”
Ora, a linguagem da justiça é sóbria e concisa, e isso explica o seu estilo lapidar e contido. É uma língua áspera, diz Radbruch, que renuncia toda expressão sentimental. Por sua vez, para o jurista uruguaio Eduardo Couture o processo judicial representa uma carga de sacrifício que nenhuma sentença pode aliviar, pois “o juiz é um homem que se move dentro do Direito, como o prisioneiro dentro do seu cárcere”.
É daí é que surgiu, então, a “ponte de ouro”, esta metáfora de Von Liszt, uma conjectura sentimental capaz de aliviar sua aflição e fundir as divergências de duas verdades, ligadas por uma unidade profunda: a ciência e arte, aparentemente divergentes.
Enfim, Wanderley ocupou a cadeira 32 da Academia Paranaense de Letras, onde foi recebido em 18 de setembro de 2000. Deixou, na verdade, cinco livros de poesias: “Folhas Caídas”, “Caminhos”, “Grito Mudo”, “Alma Nua” e “Caleidoscópio”, com participações que incluíram até o Anuário de Poetas do Brasil, além da imprensa em geral.
Recebeu o Colar de Mérito Cultural, por sua participação em concurso de poesia e o prêmio Apollo Taborda França, outorgado pela Câmara Municipal de Curitiba.
Para Noel Nascimento, que o saudou na recepção da Academia e que foi igualmente poeta e promotor, Wanderley deixou um belo e rico legado de sentimento amoroso, igual ao que imprimiu à sua vida e ao seu sacerdócio na Justiça. Vida modesta, de gestos simples e palavras amenas e amigas. Percorreu uma via iluminada pela poesia e pelo amor, e se desnudou em versos para celebrar uma visão amorável da vida, sobre a qual projetou uma coroa de confraternização universal. Seu “Grito Mudo” não resistiu o desafio de “… não ser poeta nessa nave errante. Como não ser poeta diante de tanta beleza”. E refaz a voz para celebrar que “é preciso amar,… Soltar as rédeas do coração… dar trela à imaginação… Sorrir e chorar de amor… porque amor é fundamental”.
E assim foi José Wanderley Resende, um amigo de tão suave presença e permanente lembrança. Um poeta caloroso, sementeiro do amor.