Houve um tempo em que o direito era revelação. Manifestação da vontade divina, que as partes aceitavam, seja a ordália ou o duelo. As decisões eram imediatas pois eram decretadas pelo resultado do confronto. Depois disso foi a classe sacerdotal que assumiu o papel de intérprete da vontade divina. Porém, quando esse poder passou a adquirir função política ele se fez laico, e foi confiado à pessoa do rei ou a uma determinada categoria de pessoas do próprio povo, mas da confiança do rei ou a serviço do poder político.

Foi, um primeiro tempo da justiça real, representada no modelo do “Pateo da Montaria”, do Alcazar Real de Sevilha, onde havia a “Silla del Juicio”, um trono de pedra, amplo dossel, onde o monarca se sentava e recebia pessoalmente as reclamações dos seus súditos, seguidas de sua sentença, da qual não havia apelação nem remédio. O modelo era o da justiça do rei Salomão.

De outro modo, quando a justiça passou a ser leiga e confiada a representantes do povo, era natural que fosse mantida cercada de um amplo aparato de confiança e segurança que preservasse os valores tradicionais do sistema político e social vigentes. Do lado oposto, devia revelar também ao povo a imagem permanente de austeridade, independência e culto do direito e da justiça.

Então foi preciso impor ao desempenho de suas funções regras severas de disciplina e probidade, que garantissem a solidez e servissem à confiança de suas decisões. Quando Portugal a criou, em 1609, a Relação da Bahia restringiu a convivência de seus juízes com a sociedade local: eles não podiam casar com moça do lugar, nem fazer negócios ali. Também antes de cada sessão de julgamento rezavam missa no tribunal.

D. Pedro I, rei de Castela, reinou de 1349 a 1369 e recebeu do povo o epíteto de “Pedro o Cruel”, pelo seu caráter irascível e vingativo, pois certa feita decapitou quatro juízes ao surpreendê-los dividindo o dinheiro do suborno. Cortou ele mesmo a cabeça dos quatro e mandou espetá-las nos quatro cantos do seu dormitório. Mas há uma outra versão do mesmo rei, a do “Pedro Justiceiro” que, por extremo zelo pela justiça, criou o “teste da laranja”, para avaliar o rigor dos seus juízes na administração da justiça. Mandou cortar em duas partes uma laranja e atirar uma delas no lago do jardim do palácio. A metade da fruta ficou flutuando como se fosse uma laranja inteira. Depois convocava os juízes, um a um, para um ameno diálogo entre as alamedas do seu jardim. Pelas tantas, com ar descontraído indagava do acompanhante o que via ali flutuando no meio do lago. O juiz, surpreendido pela pergunta solta, simplesmente respondia:

– Ora, majestade, vejo um laranja, tão somente…

Diante da resposta displicente, o rei enfurecido então rugia:

– O senhor é mau juiz, fora do meu jardim!

E assim se conta, que o infeliz juiz ainda tentava fugir da ira do rei, mas era alcançado à saída, pelos besteiros do palácio, que o trucidavam.

E consta que na ocasião em que um deles, por certo mais atilado que o outros, respondeu à pergunta com atenção:

– Ora, meu bom rei, o que eu vejo é a metade de uma laranja…

E então o monarca louvou sua prudência e seu critério de justiça, exaltando-o publicamente e o nomeando para o mais alto cargo da justiça do reino.

Pelo que vimos, portanto, a obra da justiça tem percorrido longo caminho, até se converter num poder de Estado. Seja um poder como manifestação divina, confiado depois às mãos do próprio homem, que ainda o projetou para os órgãos superiores do poder do Estado. Um caminho com título divino, depois convertido em instrumento até subalterno da autoridade do homem e, por fim, num dos poderes maiores do Estado.

Mas, poder com independência e autoridade própria, que não provinha do povo, nem obedecia a seus caprichos ou eventuais pendores. Poder independente, que se funda em regime e autoridade própria, exercido por seus agentes e protagonistas mediante solenidades e linguagem de código.

Mas, penso que todo esse resguardo construído para proteger a justiça, acabou se convertendo num motivo de preconceito e isolamento. Assim, me surpreendo hoje com a mídia escancarando com alarde as portas do judiciário. As audiências são feitas com a transmissão da própria imagem das sessões de julgamento, à plena luz e todo o som. Vídeos acompanham os interrogatórios e os depoimento pessoais. Apesar do número de togas e becas que se cruzam no palco cênico da justiça, os atores ganham fácil identidade e conhecimento popular. As decisões e os recursos são estampados e corrigidos pelo juízo ou mera opinião popular. Até os mais miúdos conhecem a composição dos tribunais e fazem avaliação pessoal da qualidade pessoal de cada um e seu voto. Assim, o povo formula decisões e descreve os enredos dos processos e dos recursos, como se fossem versados na lei. Predominam condenações e penas severas, sem preocupação com a concessão de benefício ou atenuantes. Tudo à moda revolucionária ou dos meetings de rua, que não atingem só os culpados, mas o próprio juiz que o inculpa. Não é só paixão ou sanha de justiça tardia ou frágil, tem ressentimentos reprimidos nisso, mas ainda não revelados. O país vive um tempo que nunca viveu antes, de catarse coletiva e em que o próprio sistema parece ser trazido a juízo.

Que este momento não seja apenas o de confiteor ou mea-culpa, mas, na verdade, prevaleça como um tempus redemptionis.

  • Autor: Acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: Arquivo