Os arqueólogos do Direito já localizaram os precedentes do Ministério Público até nos confins do Egito, entre funcionários reais, referidos em textos que datam de quatro mil anos atrás. Da nossa herança de Roma também se extraíram raízes tidas como genuínas da Instituição no ofício dos procuratores caesaris.

Muitas outras formas embrionárias da Instituição são mencionadas na Grécia clássica ou na Idade Média da Itália e da Espanha. Num ponto, porém, parece convergirem as opiniões do maior número, o de que o Ministério Público recebeu seu banho austral na França, com a “ordonnance” de Felipe IV, o Belo, que uns datam de 23 e 25 de março e outros atribuem ao ano de 1302 ou 1303, ocasião em que pela primeira vez se fala da figura de les gens du roi.

Seguindo sua evolução verificamos então que, até o século XVI esses procuradores só agiam perante os tribunais na defesa dos interesses privados do rei, mas, com o aumento do poder dos  monarcas, eles passaram a acumular uma soma maior de atribuições e dignidades, incumbindo-se dos negócios do Estado e da própria justiça. E, nesse caminho, vão acabar compartilhando de verdadeiras prerrogativas reais.

Detêm, por exemplo, o privilégio do uso do título de agentes do rei por excelência, com exclusão dos demais. Nas audiências detêm o direito da palavra, sem se descobrirem e podem apelar a face du juge. Nas solenidades públicas marcham à frente do corpo dos advogados. Além disso, ao contrário do que se diz, observa Gigot que, embora a corporação atue, em princípio, sob as ordens e instruções do rei, seus membros conservam certa independência pessoal e há referências a casos em que muitos deles se opuseram a determinação do seu soberano, recusando-se à execução de suas ordens, por lhe parecerem contrárias ao bem estar do próprio reino.

Pelo que se colhe da história, a criação do Ministério Público despertou a mais viva recepção da parte de figuras como Montesquieu, para quem a lei que o criou foi une loi admirable. Também Rabat viu nela o vislumbre de um milagre, igual à admiração que despertou em Henrion de Pansy, que viu nela um dos maiores passos que os homens deram para a civilização. Por fim, Roche Flavin registrou que sua criação foi um ato de sabedoria e humanidade.

E, então, de lá para cá, o Ministério Público não tem senão ampliado sua atuação na justiça e na direção de sua função social. E, nesse trajeto, vem colhendo amplo aplauso, em particular pelo reconhecimento de sua importância como instrumento essencial da justiça, incluindo os valores da democracia e da cidadania social. E nesse sentido e pela voz de uns e de outros, vem sendo elevado à condição de um dos poderes do Estado, da soberania e da sua potestade executiva.

Convenhamos, porém, que esses valores nem sempre foram constantes ou reconhecidos. Pelo contrário, diante das críticas oferecidas, foi preciso arrostar uma severa resistência, sobretudo quando elas tentaram contê-lo até no exclusivo espaço penal, non pure la storia ma la sua vita stessa, quando se tem em conta que a ação na área penal enfrenta preconceitos e incompreensões que torna doloroso e impopular o esforço de promover a repressão do crime e o castigo dos culpados.

Para os olhos do comum do povo e até órgãos de opinião, o promotor é tantas vezes visto apenas como um instrumento de vingança pública. E desse pensamento partilham até intelectuais como Humberto de Campos que os distinguiu com o anátema de carrascos legais da consciência. E mais que isso ainda, lavrou sentença infamante: “Essa classe de serventuários da justiça humana que acusam, ora mais ora menos, mas acusam sempre, devia ser tirada das penitenciárias, como se tiravam outrora os homens do baraço. Devia ser criada uma família de promotores, destinados por hereditariedade, como se criavam antigamente os falcões para a caça aos répteis e extrair peçonha”.

E no cível, como se sabe, a batalha ainda foi mais cruenta.

O Ministério Público passou a incursionar por campo minado e o confronto foi bem maior.

Para Músio, magistrado e senador italiano, o Ministério Público era “il più terribile dei fragelli”. Broliferio qualificou-o de instrumento “instrumento fatalíssimo” e houve até quem o comparasse ao tal cavalo de Tróia, “pieno d’armi, di perfigie, d’arti e d’ingenni, è stato sacrilegalmente introdotto nel tempio dela giustizia... come una spina nel cuore dela magsratura”.

Mortara pregou a extinção de sua atuação na justiça cível. Igualmente o nosso João Monteiro considerou-a “cientificamente absurda e prejudicial na prática”. Pereira Braga tampouco disfarçou suas prevenções de que a experiência forense não tem feito para  acrescer e justificar sua presença, acrescentando que em países de justiça tradicionalmente exemplar, como a Inglaterra, essa instituição nunca fez falta alguma.

Porém, embora confirme que é um mal necessário, adverte entretanto que o que se deve fazer é contê-la no seu papel tradicional de simples acusador ou fiscalizador dos delitos e infrações da lei.

Enfim, tanto Carcano como Mattirolo procuram justificar que o Ministério Público foi invenção da monarquia francesa para manter “sottomano” a magistratura, que era então constituída por leigos e jejunos da legislação vigente, a maior parte obscura e extravagante. Mas, essas razões hoje já não existem mais, dizem eles.

Os juízes não precisam mais de fiscais e consulentes oficiais, além do que, e a bem de ver, as manifestações dos agentes do Ministério Público não passam de improvisações estéreis e entravadoras, uma roda inútil, incomparável com a solicitude que se espera da defesa dos interesses que eles se propõem a tutelar.

Eis assim, portanto, um resumo do duro contraste de juízos e prevenções  que tem sinalizado a trajetória do Ministério Público, desde sua condição de gens du roi até a da figura independente do magistrat plaideur e hoje o titular da persecutio criminis, defensor dos hipossuficientes e dos interesses coletivos.

Certamente essa objeções já não prevalecem: se desfizeram ao longo da experiência da vida judiciária. Os preconceitos se amorteceram.

Mas, superadas essas dificuldades, convenhamos que ainda há muito para ser feito, pois, como se prevê, a instituição ainda não ganhou perfil definitivo, e o que se tem por fazer já reclama mais que o serviço da lei, senão tempero de uma forte vocação social.

Finalmente vale lembrar que quando da promulgação da Constituição de 1988, diante do leque de tantas novas atribuições que lhe foram conferidas, o editorial de um importante jornal do país se congratulava com o Ministério Público, mas advertia que o que desde então restava saber “se os homens que integram a Instituição têm condições de corresponder à soma de condições e à confiança que a nação lhe atribui”.

Na verdade, a lição é a do bom senso: não é importante saber a natureza da tarefa, mas sim a qualidade daqueles que têm o dever executá-la.

Esse é ponto maior que a história hoje confia à Instituição do Ministério Público do nosso país.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo APL
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