A luz mudou:

a afinação do dó está mais escura.

E as canções da manhã parecem ensaiadas demais.

 

Essa é a luz do outono, não a luz da primavera.

A luz do outono: não serás poupada.

 

As canções mudaram; invadiu-as

o indizível.

 

Essa é a luz do outono, não a luz que declara

renasci.

 

Não a aurora da primavera: penei, sofri. fui libertada.

Este é o presente, uma alegoria do desperdício.

 

Tanta coisa mudou. E no entanto você tem sorte:

o ideal arde em você como uma febre.

Ou não como uma febre, como um segundo coração.

 

Este é um fragmento da poesia “Outubro”, de Averno, livro de poemas de Louise Glück, publicado em 2006, na tradução de Heloísa Jahn.

A poeta norte-americana recebeu o reconhecimento pela qualidade de sua poesia, quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2020. Foi a segunda poeta a receber tal distinção, a primeira foi a polonesa Wislawa Symborska em 1996. Duas escritoras de alta voltagem literária, donas de estilos diferentes com a mesma alta qualidade técnica e conhecimento da alma humana.

Em Averno, os leitores ouvem a voz da jovem Perséfone, a mulher raptada e encerrada nas profundezas do reino de Hades, o senhor do mundo inferior, o deus dos mortos. É uma voz ancestral a expressar o sentimento vital de sobrevivência e de desejo de outra vida e de outros haveres existenciais. Perséfone, mito das estações do ano, está ligada à ideia de mudança e de afetividade: quando, depois da decisão ajuizada por Zeus, que lhe concedeu uma temporada na superfície da Terra e outra no submundo das trevas, Perséfone passava com sua mãe a primavera e a transição do verão para o outono. Era quando a natureza florescia e frutificava. Presa com Hades, a beleza e o sustento se escondiam, para renascer em outra primavera.

Esse mito da mulher dividida entre a possibilidade da criação e da fartura e a necessária permanência no escuro, no adormecimento e na espera, fazem de Perséfone a mulher ambivalente, em contínua romaria, vivendo a alternância de fazeres e deveres.

Na melancolia de um canto poético simples na estrutura das frases, na  escolha de palavras, na sequência fragmentada de estrofes curtas, na absoluta e total reivindicação de sobrevida, Louise Glück captura em mim atenção e liames (quase algemas) de sensibilidade incomuns.

A visão do outono que se aproxima no calendário e o estágio das estações da minha vida pessoal estabelecem posições que se entrelaçam nas encruzilhadas da leitura.

Mais do que a interminável viagem ascendente e descendente de Perséfone, impactam em mim as ressonâncias de um estado outonal.

Em decorrência, a pergunta incontrolada se manifesta: o quanto um leitor pode ser fisgado por um texto que chega na hora precisa quando a necessidade de compreensão é mais aguda?

Estar em sintonia psíquica com um texto – vindo de outras geografias e de outros tempos – casualmente conectado ao leitor, transborda o conhecimento e se derrama em vínculos indestrutíveis. Esta é uma das magias da leitura.

O quanto impacta um verso como “a afinação do dó está mais escura” em um leitor primaveril ou em um leitor outonal – talvez já invernal? Em que grau de vivência é absorvida a expressão “a alegoria do desperdício”, quando o desperdício é a realidade. Ou quando ele é memória, lembrança, saudade?

Em que dimensão o termo desperdício atinge o leitor? Mais ou menos do que “waste”? Mais ou menos do que “esbanjamento”, “perda” ou “resto” , seus sentidos próximos?

Perséfone olha a luz, olha para cima, para a superfície que invariavelmente e duas vezes ao ano lhe inundarão as fazes e os fazeres.

Para que luz, em qual direção e quando uma vida outonal poderá assim ter esperança? Os versos límpidos, despidos de grandiloquência e rebuscadas metáforas (permanecendo tão somente no terreno dos símiles), Louise Glück energiza a voz de seu Outro poético:

“o ideal arde em você como uma febre.

Ou não como uma febre, como um segundo coração.”

Pode ser. Uma febre, um segundo coração. Esse estado de anatomia similar – e isso a literatura faz belamente – justifica a concretude e a razão mais justificável da leitura.

Roland Barthes afirmou em O prazer do texto (1971):

“Às vezes, o prazer do Texto cumpre-se de forma mais profunda (e é nesse momento que se pode dizer realmente que há Texto): quando o texto “literário” (o livro) transmigra para nossa vida, quando uma outra escrita (a escrita do Outro) consegue escrever fragmentos de nossa própria cotidianeidade, enfim, quando se produz uma co-existência.”

Para brindar esse encontro de outonos e segundos corações é que escrevi este breve comentário.

 

Curitiba, a onze dias do começo de mais um outono.

  • Autor: acadêmica Marta Morais da Costa
  • Foto: arquivo pessoal
  • Imagem: Pepper Mint por Pixabay