Agora se sabe que a primeira mulher a integrar o quadro efetivo do Ministério Público foi Maria Dias Figueiredo, nomeada por concurso em junho de 1957, promotora substituta de Santo Antônio da Platina. Porém, não fez carreira, pois só se manteve até janeiro de 1963, como substituta de Paranaguá.

Naquele tempo ainda vigorava velado preconceito contra o ingresso da mulher na corporação ministerial. Ela era reservada, de certo modo, ao gênero masculino (officium masculorum), como sustentou Celita Alvarenga Bertotti, ao vencer esta resistência no concurso de 1960. Depois de uma carreira competente, caberia a Celita, em 1962, o galardão feminino de se tornar a primeira mulher a integrar o segundo grau do Ministério Público paranaense, como procuradora de justiça.

Depois dessas duas pioneiras, outras vieram, mas timidamente. Foi assim que, em 1978, de um contingente de 211 agentes ativos, o MP paranaense contava só com 6 mulheres. Em 1980 a participação feminina passou para 9. Eram 13 em 1985 e chegou a 21, em 1986, representando, entretanto, apenas 7% de toda a corporação.

Foi nesse tempo, então, que passou a ocorrer o verdadeiro boom feminino do MP, reflexo natural da emancipação da mulher, um dos destaques do nosso tempo, em que a mulher passou a disputar com o homem toda sorte de trabalho e responsabilidade. Então, dessa data em diante o contingente feminino do MP passou para 77, em 1991, com a participação em 24% do efetivo de 404 membros ativos do Parquet. E de lá para cá esse percentual só tem crescido, confirmando o prognóstico de que em breve essa participação seria levada à igualdade ou a se tornar majoritária, tendo em conta o resultado dos últimos concursos de ingresso na carreira, em que as mulheres vêm conquistando sucessivas vantagens de aprovação, em comparação com os candidatos masculinos.

Assim, numa visão maior, essa participação crescente da mulher constitui, a bem de ver, mais um episódio das conquistas que a mulher vem alcançando no mundo moderno, e que já chegaram a tal ponto que hoje a colocam parelha com o homem, em todos os ramos de atividade, mesmo naquelas consideradas exclusivas do homem, aguçando o eterno desafio: – qual dos sexos possui maior coeficiente de inteligência? Quem detém maior potencial de ação?… Existem áreas exclusivas para cada um deles?

Tudo, porém, em boa paz, para que se cumpra inteiramente a predestinação bíblica, haja o que houver; um será complemento do outro e constituem o binômio sagrado duos in carne una (Genesis III, 24).

Porém, há pouco tempo atrás ainda não era assim.

Pelo contrário, a mulher sofria publicamente feroz discriminação, pois até a legislação vigente lhe negava o direito de reger sua própria vida e seus bens, reduzindo-a à condição igual ao menor (ut pueri), submetida ao poder do pai ou do marido. Era-lhe vedado o exercício de qualquer cargo no quadro da justiça ou na atividade da advocacia. A pretexto, vale lembrar que em 1899 armou-se memorável e cerrada questão jurídica, envolvendo análise psicológica e avaliação fisiológica da mulher, a respeito do simples pedido de admissão de Mires de Camargo, como membro do Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil, do Rio de Janeiro.

O requerimento foi indeferido e melhor sorte não encontrou nos tribunais, embora os votos vencedores obtivessem estreita vantagem e tivessem que enfrentar vigoroso dissenso. A perlenga ainda se dilatou pela imprensa para que dela se ocupassem figuras ilustres da época, tiroteando de trincheiras opostas. Por fim, em 1906, o Instituto mudou de pensar e acabou admitindo a nova associada, pondo fim à questão.

Curioso, porém, é rever, mesmo a simples coup d’oeil, os argumentos que serviram para provar a inaptidão da mulher para o foro. Ora, é sabido que a mulher acumulou milênios de preconceitos contra seu valor intelectual e até moral, mesmo na opinião daqueles que ostentavam a reputação de mais sábios.

Atendo-nos às manifestações mais recentes e ligadas à área do direito, sustentava o fisiólogo Weiniger que é tão assumida a vocação da mulher para a mentira que a tornava incapaz de divisar a própria verdade. Igualmente, o socialista Proudhon proclamou que a mulher carece de vocação para o direito, uma vez que sua consciência é de natureza antijurídica. Com o mesmo rigor, Herbert Spencer denunciou a deficiência natural da mulher para a mais abstrata das emoções que é o sentimento da justiça.

Embora fosse esse um espécie de pano de fundo, a questão se feriu mais de perto, principalmente em torno da legislação da época, num tempo em que que, por dispositivo constitucional (art. 83, F/91), ainda estavam em vigor no pais as Ordenações Filipinas, subsidiadas pelo estilo e os costumes do reino de Portugal e até pelo Direito Romano, em matéria civil.

Ora, as Ordenações só concediam ao homem, in expressis o direito de ser procurador (Todo homem pode ser procurador em nossa Corte e Casa do Povo, perante outros quaisquer Juízes, Liv. 1, tit. X.III, parágrafo 19), e tampouco o nosso direito costumeiro admitiu, em tempo algum, a presença da mulher nos pretórios ou em cargos da justiça.

Numa visão em torno, a esse tempo, unicamente os Estados Unidos haviam concedido o direito da mulher advogar, mesmo assim com grande resistência da opinião pública e dos tribunais.

A propósito, em 1875, a Suprema Corte de Wisconsin, em decisão famosa relatada pelo justice Eduard Ryan, negou o direito de advogar a Lavínia Goodell, sob o fundamento de que, “The law of nature destines and qualifies the female sex for the bearing and nurture of the children of our race and for the custody of the homes of the world and their maintenance in love and honor.

É certo, porém, que 4 anos depois, a Corte modificou seu entendimento, habilitando-a ao exercício da advocacia, em razão, principalmente da reforma da lei local; exercício que pouco valeu, pois Lavínia morreu no ano seguinte (“Corpus Juris Humorous”, John Mc Clay, p. 56/58.

Na Rússia e na Espanha as portas das universidades estavam fechadas para as mulheres, e as de Portugal só se abriram nas últimas décadas do século que findava.

Quanto a Roma antiga, prevalecia naquela época o entendimento de que a advocacia é ofício impróprio para as mulheres, porque repugna à sua pudicícia. Apesar disso, porém, se conta que havia mulheres advogadas, como Amásia, Sentia e Hortência, filha de Quinto Hortêncio, rival de Cícero, mas foi por culpa dos costumes irreverentes e da linguagem licenciosa de uma tal Cafúrnia, que acabaram cassando o direito da mulher advogar, a princípio pro aliis, que depois Justiniano converteu em exclusão definitiva da mulher dos ofícios civis e públicos, mesmo para defender direito próprio (Dig., Liv. 50, tit. 17, fr. D2).

Por fim, o derradeiro argumento, o coup de grace dado em torno da fragilidade da mulher, fragilidade física, diziam, que a torna mais apropriada para a vida sedentária, poupando-a do desgaste físico e do confronto pessoal que a litigância forense impõe a seus participantes. Por outro lado, sua fragilidade emocional, não lhe permite suportar, sem danos para o seu decoro e seu caráter, posta diante da visão degradante das baixas paixões e dos interesses subalternos que se agitam nos conflitos judiciais. Na verdade é a própria natureza que dá o destino da mulher, através do dom divino da maternidade e da missão que lhe corresponde de fazer do lar o santuário da família. E foi que, com esse apelo, que o subprocurador Gabriel Luiz Ferreira deu fecho a seu alentado parecer no recurso de habeas-corpus manifestado pela jovem bacharela, sustentando, ao gosto literário da época, que: “Dotando a mulher de qualidades quase divinas, que são para a humanidade como reflexos da bondade infinita, o destino providencial reservou-lhe uma missão augusta, suavizante e civilizadora que não pode ser transferida do regaço da família para os cimos alcantilados da vida pública, sem se perverter em sua essência, em seus estímulos e em seus resultado” (“O Direito”, vol. 81, pág. 329).

E é por essas veredas, portanto, que a mulher vem conseguindo superar, uma por uma, as barreiras que o preconceito tem armado e multiplicado contra ela, desde priscos tempos. Há, porém, mais o que vencer, convenhamos, a custo de muito esforço e coragem, e, à medida que a mulher adquirir uma maior consciência do seu merecimento e se dispuser a alargar os espaços que ainda restam para sua realização pessoal, e, mais ainda, para cobrar do homem a parte que lhe compete na partilha das responsabilidades da vida e da humanidade.

Por fim, o Ministério Público paranaense vai bem, obrigado: é o que se diz e se prova, mas essa reflexão sobre o passado é uma lição necessária para medir a distância percorrida e evitar que sejam cometidos os mesmos erros, segundo a repetida advertência do sábio e sensível Santayana.

Foi, enfim, o que se tentou dizer, no espaço que nos foi consentido… que o preconceito tem armado e multiplicado contra ela, desde priscos tempos. Há, porém, mais o que vencer, convenhamos, a custo de muito esforço e coragem, e, à medida que a mulher adquirir uma maior consciência do seu próprio merecimento e se dispuser a alagar os espaços que ainda restam para a sua realização pessoal, e, mais ainda, para cobrar do homem a parte que lhe compete na partilha da responsabilidade da vida e da humanidade.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo pessoal
  • Imagem: cedida pelo autor