David Antonio da Silva Carneiro representou um dos mais importantes integrantes do grupo de intelectuais paranaenses que participaram da obra de construção da nossa história regional: seus temas, sua imagem histórica e social, além de suas personalidades mais representativas.
Nascido em Antonina, filho de tradicional família de ervateiros, recebeu o nome do pai, que era do avô e do bisavô; um traço particular que, embora pareça um hábito da época, denuncia, no particular, o intento de preservar a identidade da linhagem familiar. David era membro da oligarquia regional. Seu pai, homem de voz forte e caloroso sentimento cívico. Participou da vida política em todos os níveis e até como um dos próceres da imprensa curitibana. Foi próspero gestor industrial, e se revelou pioneiro da previdência social, que implantou em sua indústria mediante assistência médica e previdência social. Teve vida breve, porém foi pai prestante, sobretudo quanto a David, filho dos primeiros dez anos de casamento, a quem infundiu forte sentimento do dever moral e do amor à terra comum. E a quem ensinou que a historia é o verdadeiro caminho da integração do homem na nacionalidade.
Ao contrário dos hábitos de hoje, mantinha convívio permanente com o filho a quem, ainda estudante, dirigia, habitualmente, três cartas por semana, com conselhos e advertências, depois do que concluía que: “gente de nossa raça não desmente a estirpe!”. Penso então que a decisão de desistir da carreira militar diante do episódio dos Dezoito do Forte, em que perdeu seu melhor amigo Newton Prado, até nem foi o motivo preponderante do seu descaminho, mas sim, por vertente paterna, foi seu orgulho e espírito natural de confronto do seu temperamento, que dificilmente se acomodaria à condições de vida e disciplina do militar.
David se confessou discípulo e continuador de Romário Martins e que foi nas obras de Francisco Negrão e Ermelino de Leão que deu seus primeiros passos na história paranaense, iniciação que depois desenvolveu com independência, imprimindo visão própria. Entretanto, embora sem integrar o movimento paranista de sua geração e dos nossos “historiadores tradicionais”, David cultivou o que foi qualificado de paranismo, simplesmente, um estado de espírito largo e forte de pertencimento à terra e seu universo. Um quadro de imagens elaboradas com exaltação dos homens da terra e seus filhos, convertidos em heróis por seus feitos. A “História Psicológica do Paraná”, de 1944, nem história é a proprement dire, mas um confiteor, um declarado non sum dignus.
Uma confissão de que o paranaense é, sobretudo, um “biriva”, tímido e complacente, que permite que seu espaço seja ocupado pelos outros. Entregue a si mesmo é um desambicioso, que não vence a preguiça, o que chamou a atenção de Saint Hilaire. Entretanto sob comando de outro, o paranaense logo prospera e se revela dotado de todas as qualidades próprias da inteligência e bom desempenho. No resumo de David, nossos primeiros povoadores foram oriundos do litoral paulista e ocuparam Paranaguá. Eram homens rudes e ambiciosos que acumularam fortuna garimpando o ouro que era abundante. Porém, de posse da riqueza e instalados à beira-mar, abrandaram-se os corações. Galgar a cordilheira de granito e alcançar o planalto foi o capitulo seguinte, confiado ao esforço dos primitivos parnanguaras. Ocorre que o planalto tampouco oferecia condições de estímulo ao trabalho e à fortuna. O comércio se limitava ao consumo local, confinado, de um lado e outro, pelos parapeitos da Serra do Mar e pelos Campos Gerais, territórios extensos mas sáfaros, que pouco prometiam à esperança de prosperidade. O gado reproduzia-se sem esforço nas mãos de peões madraços.
É ai que surgem os adventícios, gente de toda qualidade que aflui de todos os cantos e vem suprir nossas carências naturais e preencher cargos de governo e administração da Província, que deixamos de ocupar por nossa própria incúria e tolerância. Na verdade, grande parte desses filhos adotivos são adventícios úteis, bem-vindos, desde Afonso Botelho, Dr. Faivre, Cândido Muricy, Trajano Reis, Ouvidor Pardinho, Ermelino de Leão e outros inumeráveis. Por outro lado, porém, ficam os que se serviam da nossa timidez e complacência para assumirem o comando e a representação da província. Não contribuem para o espírito paranista, sua história e valores de cultura e arte. Durante o Império, dos vinte e sete presidentes que tivemos, só três deles eram nossos conterrâneos. Nossos primeiros juízes e médicos eram ádvenas e houve tempo em que não havia na justiça paranaense um único juiz que não fosse de outra província. Ora, a exaltação nativa de David chegou a arrastá-lo ao Tribunal de Segurança Nacional, do Estado Novo, em 1944, sob a acusação de incitar a opinião pública contra agentes do governo do Estado, supondo a hipótese de ter cometido crime de lesa pátria. Seu alvo era Wilson Martins, assessor de gabinete do interventor Manoel Ribas, para ele, um típico adventício. De tudo, porém, resultou absolvido.
Outra controvérsia alimentada pela heroicização do nosso historiador e a consagração do nosso território foi atribuída a Afonso Botelho, saudado como o maior símbolo cívico da nossa história. Para David “era Deus no céu e Afonso Botelho na terra”, dizia Cecília Westphalen. Tanto que, na celebração do centenário da nossa emancipação, David insistiu que trouxessem suas cinzas de Portugal, para receberem a consagração dos paranaenses.
Idolatria que Pilotto discordou com a veemência de sempre, por constituir título imerecido. Outros tantos desafios foram criados, como o do Cerco da Lapa, em que o Cel. Lacerda é colocado no lugar do General Carneiro. Houve ainda o episódio do projeto arquitetônico do Teatro Guaíra, de Rubens Meister. Ora, só?!…
Foi assim, como é natural da história, a exaltação do Paranismo de David Carneiro ele o levou ainda mais longe através do apostolado positivista e do esforço de construir uma história com alma, mitificando seus modelos de exaltação heroica, voltados para a formação de uma grande unidade comum de amor, confraternidade e força de grandeza cívica regional.
Assim foi David Carneiro: deixou presença inesquecível no altar da memória paranaense, que é parte igualmente sagrada da história geral do nosso país.