Anos de chumbo foi expressão adotada da Europa e transportada para o Brasil, e se refere ao período dos fins de 1970 a 1980, em que parte da França, da Alemanha e da Itália viveram a violência da ação revolucionaria de grupos terroristas e clandestinos de extrema esquerda, e que, por igual, na sua projeção no Brasil, enfrentaram a ação repressiva do aparato político-militar instalado em nosso país desde 1.º de março d e1964 e que se estendeu por sucessivos governos militares até 1985, quando da instalação do governo civil de José Sarney, assumindo, então, entre nós as características de governo autoritário, nacionalista e anticomunista, que levou à dissolução do Congresso Nacional, à censura dos meios de comunicação, à supressão das liberdades civis, à tortura e ao exílio dos seus dissidentes, através do AI/5 de 1968, com imposição de um código militar que permitia  prender qualquer suspeitos de oposição ao regime, vedando-lhe ainda mais sua  revisão judicial.

Embora a ditadura militasse prometesse adotar, a princípio, uma breve intervenção no governo do país, e até merecesse apoio de importantes segmentos conservadores da sociedade brasileira, ela acabou perdurando por 21 anos e assumindo a forma de um governo civil-militar, que impôs restrições às liberdades civis e, ao abrigo do argumento da segurança nacional, que passou a reprimir toda manifestação de ideologia comunista, sob a  forma de ação ou conspiração urbana, terrorismo ou ligas de reforma agrária, mesmo as que guardassem mera semelhança e sem expectativa futura de levar à subversão, como o próprio trabalhismo de Vargas ou outras manifestações semelhantes e não marxistas, tidas, porém, como subversivas à ordem política e social do regime.

Foi então que, recentemente, entre tantas intervenções da ação da ditadura em nossa cidade, fomos surpreendidos com a notícia da morte de dois dos nossos ex-alunos de Apucarana, vítimas de agentes da repressão. Foram eles José Idésio Brianezi e Antônio dos Três Reis Oliveira a quem fomos ligados por algumas atividades e interesses ocasionais, ou mesmo pelo simples convívio escolar, como professor. De Edésio sabia pouco, porém, embora bastasse para considerá-lo um jovem de bons costumes e formação familiar, que adotava ocasionais manifestações de crítica à ação da ditadura militar e com participação em congressos de estudantes pela democracia, a que então eu atribuía mais à conta de sua própria juventude e grau de estudo.

Do Três Reis eu sabia um pouco mais do que o apelido de “Preguinho”, como aluno da Faculdade de Economia de Apucarana, onde fui professor de História Econômica. Foi daí que, durante a correção dos seus trabalhos de classe percebi ensaios de ideias próprias de economia e política social, fora, no entanto, de uma doutrina supostamente marxista, ou outras de igual cunho subversivo ou revolucionário. Ideias que até me pareceram promissoras para um jovem disposto a conquistar uma formação econômica superior, refletindo sobre o quadro tardio da economia brasileira, em contraste com tantas outras áreas prósperas e desenvolvidas, que contaram com o benefício de uma política social de promoção do progresso e riqueza do seu país, tanto aqui como no mundo.

Embora corressem inúmeras notícias da constante prática de torturas e assassinatos dos opositores ao regime, as Forças Armadas mantiveram sempre um discurso negativo, que só alcançou confirmação oficial com a resposta ofertada pela Comissão Nacional da Verdade, de 2014, e com o memorando divulgado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos (2018), que confirmaram a responsabilidade pela morte e pelo desaparecimento de 434 opositores do regime, além da notícia da prática de genocídio contra nossos povos indígenas.

Não acompanhamos os percursos que ambos os jovens fizeram, e a participação em diversos movimentos e congressos estudantis de resistência à ditadura, tanto no Paraná como em São Paulo, senão com a notícia de que, em abril de 1970, Brianezi foi surpreendido numa pensão da Rua Itatins, n.º 88, em São Paulo, por agentes da repressão política da ditadura, ocasião em que foi executado sumariamente com três tiros no peito.

Nesse período ganhou destaque, também, a notícia do arrependimento de muitos dos agentes da subversão, de cuja divulgação se serviu o comando militar, promovendo o recrudescimento da repressão, com vistas, certamente, a incentivar ou conquistar iguais desistências ou renúncias.

Foi com esse destaque que, à vista das suspeitas de um efetivo comprometimento de Antônio dos Três Reis e da iminência de sofrer um provável assédio da repressão, que, com intuito de protegê-lo e até atrai-lo para um destino melhor que, contando com as poucas lembranças que ainda me restam, logrei fazer com que o jovem fosse admitido como auxiliar de serventia do cartório criminal da comarca de Faxinal, no Paraná, onde se deixou estar por um tempo, e, desde então, não voltei a vê-lo, ocupado a seguir na minha própria carreira funcional, distante dali.

Soube depois, porém, que Três Reis, além de sua militância estudantil desde a adolescência, integrara a Ação Libertadora Nacional, produzira programa de rádio e ainda militara na Dissidência do PCB, além de ser investigado e indiciado pelo Departamento de Ordem Política e Social.

Foi morto em 17 de maio de 1970, onde residia, no bairro do Tatuapé, de São Paulo, durante “averiguações de aparelhos” promovidas por agentes do DOI-COD, levado a óbito numa troca de tiros. Esse óbito, porém, só foi registrado anos depois e seus restos mortais só foram resgatados pela família mediante intervenção do governador Roberto Requião e apoio de autoridades do governo.

Enfim, vencido o tempo e o conflito, José Idésio Brianezi e Antonio dos Três Reis Oliveira, receberam homenagens de Apucarana, com a inauguração, em 2010, de um memorial, que é parte do projeto “Direito e Verdade e à Memória”, da iniciativa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e instituições locais.

A escola estadual de Apucarana recebeu o nome de Idézio Brianezi e três outros cemitérios de São Paulo, receberam também placas com o nome das vítimas ali sepultadas. Três Reis Oliveiro mereceu também a homenagem do seu nome em uma das ruas da cidade de São Paulo, e igual denominação foi oficialmente concedida ao colégio estadual de Apucarana.

Enfim e ao final de tudo, só nos resta lamentar a morte de dois jovens promissores, frutos de boa origem e promessas de um bom destino, que precocemente se expuseram à voracidade de pretextos tantas vezes transitórios de paixões humanas, cujo alcance maior nem eles mesmo percebiam, por conta de uma provável imaturidade, ou porquê, por igual, tampouco seus opositores ou executores atinavam sobre o alcance verdadeiro do propósito a que serviam, reduzido a uma luta de grupos ou disputas de poder.

É, como já se disse antes: paixão política é também amor, mas voltado para o bem social, enquanto que o amor comum é sentimento individual, egoísta e exclusivo.

  • Autor: acadêmico Rui Cavallin Pinto
  • Foto: arquivo pessoal
  • Imagem: cedida pelo autor